Desde 2019 que assistimos a um conjunto de acontecimentos estranhos nos mais variados aspetos do nosso dia a dia. Claro está que não vale a pena mencionar o facto de vivermos numa pandemia como não se via há muitas dezenas de anos, mas principalmente por erguerem-se discursos que foram maioritariamente derrotadas no pós-Segunda Guerra Mundial. Assistimos a eleições em que são os candidatos com poucas capacidades para governar serem os eleitos.
Se é verdade que a democracia teve os seus altos e baixos desde as primeiras experiências na antiga Atenas, também é verdade que se tem demonstrado o melhor regime político criado até agora. Inicialmente a ideia de democracia não era algo abrangente a qualquer pessoa, mas também na contemporaneidade com a divisão, com base no género. Na verdade, a grande maioria da população de Atenas — escravos — apenas tinha o direito a trabalhar sem direito a pronunciarem-se politicamente ou, mais recentemente, com as lutas feministas no igual direito ao voto. Por outro lado, é no seio da própria democracia que se escondem as sementes da sua erosão.
Platão dá o exemplo, que para os dias atuais seria algo como um avião com os seguintes personagens: dono da companhia aérea, tripulantes e o piloto. Imaginem que todas as pessoas apenas tinham um interesse: pilotar o avião. Num primeiro momento o piloto é afastado dos comandos porque o dono da companhia aérea faz jus à sua capacidade física. Mas tem um problema: é surdo, pouco vê e não entende bem porque os aparelhos piscam e apitam com tanta violência. Apercebendo-se do seu número entra em cena outra personagem. Os tripulantes do avião acreditam que devem ser eles a pilotar o avião. Tal como o dono da companhia aérea, eles também não sabem porque existem tantos botões e pequenos ecrãs, mas não há problema. Cada um dá a sua opinião sobre como pilotar o avião e, depois, logo se verá como corre a viagem.
O exemplo é caricato e alguns podem perguntar: o que isto tem que ver com política? Com a eleição de Donald Trump, Bolsonaro ou outros líderes populistas, apercebemo-nos que mesmo em países onde a democracia está bem enraizada, ainda é possível destruir a suas bases a ponto de ganharem espaço mediático pessoas que não têm ideias próprias. Fazem vagas observações sobre grupos minoritários que prejudicam a maioria; a divisão simplista da realidade em que coloca, de um lado, os bons e, do outro lado, os maus. Pessoas que conseguem mobilizar pessoas, mas nenhuma habilidade para governar um país.
No teaser de apresentação da 4ª temporada de House of Cards, Frank Underwood declara que temos os líderes que merecemos. Se quando vamos ao hospital só admitimos ser vistos por um médico, porque aceitamos para nos governar qualquer pessoa que apenas se apresenta como militante de partido A ou B? Se estamos em viagem não queremos menos do que um experiente piloto a comandar o avião em que estamos, porque aceitamos que nos governe uma pessoa que apenas é muito boa a discursar?
Quando Platão defendia que a pólis (lemos País) apenas devia ser governada por filósofos, delineou um modelo de cidadão que é a essência de qualquer democracia. Esta pessoa-ideal é alguém com verdadeiro interesse na verdade e conhecimento, age íntegra e altruisticamente sem mesquinhez ou interesse em dinheiro e cargos. Como já defendi num artigo anterior, o problema não é política. O problema é com o perfil de quem se apresenta a eleições que, conjugado com a facilidade com que as redes sociais, e especialmente as fake news, nos isolam em bolhas que apenas servem para vivermos num mundo representado da forma como queremos, permite que pessoas mesquinhas ganhem espaço e condicionem outras.
Líderes imbecis sempre existiram, mas a política é importante demais para ficar apenas aos cuidados de quem nem uma empresa sabe gerir ou de quem só consegue ter atenção quando diz que uma jornalista não é violada porque não merece. Numa democracia o perigo da sua degeneração sempre espreita, mas cabe-nos não pactuar com os intolerantes antes que eles acabem com a tolerância. Se não entendemos isto, temos os líderes que merecemos.