Brexit, o golpe fatal

Tal como o momento actual, apetece começar o texto com uma negação, sintática, apenas. Não são fáceis de entender as razões do Brexit, o processo de eventual saída do Reino Unido da União Europeia. Ou não são de entendimento linear e escolha de “um dos lados”. Os antecedentes parecem ser mais acessíveis à análise e, no entanto, ainda nos complicam mais a tarefa.

Razões históricas há diversas. Desde sempre, na sua história, tão presente da mais global História da Civilização Ocidental, na qual o Reino Unido teve um preponderante papel, talvez o mais determinante das nações europeias, particularmente desde Henrique VIII e a sua cisão com a Igreja de Roma e, seguidamente, pela mão de Elisabete I, a mais determinante monarca Inglesa, do desenvolvimento social, económico e histórico da Grã-Bretanha, a Ilha tem desempenhado o papel de referência em toda a Europa. Passou por duas Guerras Mundiais e ultrapassou as crises, tendo sempre iniciado as mesmas em posição de clara desvantagem, no que o seu nacionalismo e sentido de união tiveram o papel principal.

O Reino Unido não teve nunca uma postura fácil e pacífica com a Europa, com a antiga Comunidade Económica Europeia e a União que depois se lhe seguiu. Após a sua adesão, em 1973, foi efectuado um referendo sobre a continuidade da presença na Comunidade Económica Europeia e foram renegociados os termos da sua permanência. Não há nada que impeça um país de ficar, de se questionar, ou de pretender sair deste espaço comunitário, onde antes pretendeu estar. Como provavelmente se entenderá, após o referendo de dia 23 de Junho, fique o Reino Unido ou não na União Europeia, as questões e problemas que foram entretanto levantandos, mesmo que parecendo pouco razoáveis, fizeram daquele país o contraponto a todo o movimento que a União tem vindo a impor, a grande maioria das vezes, sem qualquer possibilidade de contestação ou, pior, de recusa de aceitação de regras e medidas tomadas por decisão centralizada em Bruxelas e, normalmente, preparadas entre Berlim e Paris. O espaço de Democracia da União Europeia é de democraticidade muito duvidosa. E tem-se agravado esta forma de estar e de tudo determinar. O que constitui um dos aspecto que um país habituado a ver-se a si mesmo, com legitimidade, como uma das Democracias mais antigas e sólidas do Mundo, questiona e contesta.

Na ânsia de vir construindo a União, que se dizia e pretendia coesa, eficiente e exemplar no Mundo, os decisores europeus deixaram de se preocupar com o respeito pelas diferenças nacionais, no que o Reino Unido não se revê, por o país que mais se orgulha da sua identidade e da diferente forma de estar. Tem a Grã-Bretanha a prática de padrões “imperiais”, no uso de medias e instrumentos de medição, contrapondo-se às unidades do Sistema métrico internacional. Conduzem pela esquerda, possuem um sistema de avaliação da segurança e qualidade alimentar próprio, bem mais sofisticado e, principalmente, realista e eficiente do que o famigerado e exagerado HACCP, imposto a todos os países europeus, deixando de fora o Reino de Sua Majestade. Há alguns anos assistiu-se ao caso da salchicha inglesa, considerada pela Europa fora nas normas europeias e que os ingleses não aceitaram condenar. Na altura, Jim Hacker, utilizou esta querela para capitalizar em si os votos do eleitorado, mesmo após ter já conseguido que o caso fosse aceite pela Europa como mais uma excepção. O Reino Unido é o Estado Membro com mais excepções permitidas pela actual União Europeia. Este um facto conseguido pelo poder negocial dos ingleses. O país nunca aceitou a liderança alemã da Europa, a potência com quem teve de se confrontar por duas vezes, em duas Guerras Mundiais e se orgulha de ter partido de uma situação desvantajosa e ter conseguido sair vitorioso.

A moeda única europeia, que tem dado sinais de debilidade e de ter conduzido a desequilíbrios e a endividamentos sem solução à vista, foi sempre mal acolhida pelos britânicos e Thatcher teceu críticas e dúvidas que agora são relembradas, por boa parte dos eurocépticos. Contudo, os eurocépticos não são hoje os mesmos de há alguns anos. Há uma divisão pouco clara na sociedade britânica, notando-se no seio dos Partidos principais, Conservador e Trabalhista, mas também entre os países que compõem o Reino. A Escócia, europeísta na sua maioria e com forças políticas vencidas no referendo sobre a sua Independência, irá provavelmente levantar de novo as razões da sua auto-determinação.

Problemas com a fronteira com a Irlanda, poderão surgir, dada a complexidade da situação, que corresponde ao restabelecimento de fronteiras físicas terrestres onde actualmente se circula com pessoas, bens e serviços, livremente.

As razões mais apontadas para o Referendo, prendem-se quase todas com as alterações do funcionamento da União Europeia, por via de cada vez maior número de regras e imposições, recentemente significativamente acrescidas com os problemas da migração e com a ameaça terrorista. E as regras nem estão ainda todas decididas nem estabelecidas.

Em 2015, David Cameron julgava poder perder maioria absoluta para governar e, porque desde 1975 muita coisa mudou na Europa, prometeu este Referendo. Afinal não teve qualquer problema com a maioria pretendida, mas a promessa tem de ser cumprida. Uma diferença, aliás, para com os políticos portugueses. Neste momento, Cameron, que prefere permanecer na União, pelas vantagens económicas que o acesso facilitado ao grande mercado europeu lhe confere, e sobre o que as grandes empresas britânicas não se cansam de alterar, deve ter-se arrependido da promessa.

O Reino Unido conseguiu passar pelas dificuldades económicas derivadas da Crise de 2008 e apresenta um crescimento que lhes pode assegurar a prosperidade, mas a sociedade inglesa (que Thatcher dizia não existir) é das mais desiguais do Mundo. Mesmo tendo das melhores remunerações no contexto europeu, o que aliás lhe confere a atractividade a tantos emigrantes, da Europa e da Ásia, a Grã-Bretanha apresenta enormes desigualdades remuneratórias e de mobilidade (ascensão) social, que sufoca grande parte da classe média, que Cameron se esforça sempre por conquistar. Os problemas sociais dos britânicos, não serão, no entanto, resolvidos por uma União Europeia com outros tantos, do mesmo cariz.

Por grande parte dos analistas e comentadores são apresentadas razões económicas e financeiras. Estas últimas são a âncora do Reino Unido e um factor maior de dissidência com a UE, por ser Londres a praça financeira mais importante da Europa, uma das referências mundiais e o grito de vitória dos ingleses sobre uma Globalização que não foi por eles iniciada e que, com a excepção da sua bolsa financeira, não lhes correu bem.

Há causas históricas e civilizacionais que sempre levam os britânicos a não aceitar sem discussão regras e decisões europeias. As mesmas que podem trazer mais problemas ao continente europeu do que ao Reino Unido. Se o país decidir sair da EU, perder-se um Estado que contesta Berlim e até Paris (hoje sem rumo ou visão europeia, como é quase sempre com os socialistas, que apenas vêm um espaço de Providência e não de Oportunidade de desenvolvimento). Perde-se um Estado que tem armas e argumentos de contestação fundamentada, por vezes exagerada, mas que pode vir a ter razão no futuro. E a emigração pode ser um aspecto que os britânicos utilizam a favor deste processo de cisão com a Europa, mas é ainda, de facto, um problema para o qual o centro da Europa não conseguiu encontrar solução.

Perder-se-á a maior referência histórica da democracia mundial, o país berço do maior idioma do Mundo, o mesmo país que se levantou por diversas vezes e suplantou dificuldades e ainda hoje se desenvolve e resiste ao confronto económico com o Oriente. País de recursos científicos, de referências intelectuais, de enormes filósofos, poetas, escritores, artistas de todas a vertentes, de empreendedores de sucesso, que conseguiu manter marcas suas tradicionais, embora tivessem mudado de mãos e deslocado centros de decisão (o que aos portugueses assusta muito e não se percebe porquê). Parece que com a eventual saída do Reino Unido pode a Europa perder bem mais do que o próprio país, mas, ainda assim, o processo nunca será fácil e pode ter de se confrontar com uma Escócia a exigir novo Referendo independentista, dificuldades nas exportações ainda que temporárias e fazer parte de um projecto que em tempos abraçou e do qual se afastará sem retorno.

Se o Reino Unido não decidir sair, na sequência do Referendo de dia 23, o que já negociou com a Europa, no início de 2016, já irá trazer alguns problemas a muita gente e poderá levantar precedentes que outros quererão seguir. Tal como a sua eventual saída poderá ser um precedente para que outros se questionem sobre a permanência, nomeadamente os que agora viram “à direita” e para os nórdicos, sempre com modos de vida bem distintos do restante da Europa. As premissas que os britânicos levantaram com as negociações efectuadas para poderem permanecer na União terão consequências muito significativas sobre a emigração, sobre o envio de receitas para as famílias dos emigrantes, sobre a livre circulação e o controlo de fronteiras e sobre as regras especiais que protegem a City de Londres, no contexto dos outros mercados financeiros.

O processo desta eventual saída do Reino Unido confirma, por um lado, que as coisas não têm estado bem com a União Europeia e com a relação desta com o resto do Mundo, em termos de produção industrial, de sistema financeiro, de sistema monetário e, sobretudo, sobre a Visão do que deve e consegue ser a Europa num Mundo que muda à margem dela. Que nada ficará como antes foi, parece certo. As ameaças do Leste com o extremar de posições políticas, com a loucura de Putin e a sua sede de guerra constante, não são bons cenários e augúrios agora com o Brexit em cima da mesa. Uma Europa a quem já escasseava liderança (embora alguns persistam em ver Merkel como líder, não entendendo o seu papel e capacidades limitadas), vê-se agora a braços com um problema maior. Se antes pretendeu a saída de algum dos mais fracos, como ficará com a de um dos mais fortes? Há quem insista que a Europa fica e ficará bem. Não me parece. O Reino Unido, insisto, é referência maior da Civilização Ocidental e da nossa Cultura Europeia. Ficaremos todos bem com um Estado assim fora do nosso contexto e das nossas decisões comuns?

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