Amsterdão, 2011
Estava a aproximar-se a data e lá íamos nós. Para quem a Páscoa não tem grande significado, uma boa maneira de lhe preencher algum sentido é a viajar – com o perdão cristão dos que a comemoram – e há que preencher o mais que se pode, pelo que logo na Quinta-feira Santa nos dirigimos ao aeroporto, com bilhete low-cost, em direcção a Amsterdão. Estávamos em Abril, clima ainda fresco por terras lusas, pelo que, pelas restrições da bagagem e os ditames do termómetro, o casaco de Inverno ia vestido. Se cá ainda fazia jeito, lá, noutra altitude, havia de fazer mais.
O voo para Schiphol era tardio, asseverando chegada para as dez da noite, hora local, como nos lembrou o piloto, e lembro a sensação estranha daquela chegada como se tivesse acontecido há pouco: assim que pusémos pé de fora do aeroporto, levámos um estalo daquilo a que aqui chamamos bafo. Não me ocorre nada mais apropriado para o definir. Bafo de ar quente. Tudo o que não esperávamos de Amsterdão.
Creio até que esse abafo do ar nos pôs cambaleantes, meio azamboados, quando, chegados ao centro da cidade, enfiados nuns casacos inapropriados, arrastando as malas sobre as rodas ruidosas, como que queixosas do peso que carregam, num piso que não é delas, de imediato fomos vítimas de buzinadelas justas, ao tomarmos inadvertidamente o espaço dos ciclistas, o que, àquela hora, e naquelas circunstâncias, nos pareceu um trajecto válido para fazermos a nossa caminhada até casa. Logo percebemos quem tinha prioridade ali.
Parece-nos a nós que os holandeses nasceram a andar de bicicleta, mas essa destreza e tradição conquistou-se à força de mobilização social e política. Houve um tempo, após a Segunda Grande Guerra, em que, como em qualquer cidade dita desenvolvida, com anseios de prosperidade, Amesterdão se viu inundada por automóveis, que pretendiam assumir o seu papel ‘fundamental’ na cidade. Mas, como tantas outras, Amsterdão tinha mais anos de vida que o recente e orgulhoso automóvel, sendo a sua construção inapropriada para receber este símbolo de riqueza e modernidade em tão grande número. Houve demasiados acidentes para o critério holandês, houve demasiadas perdas na qualidade de vida, pelo que se viram no imperativo de travar, na forma de protestos, aquilo que se apresentava como uma corrente inevitável de progresso. Bravos Holandeses! A bicicleta prevaleceu.
Tomada consciência do nosso lugar secundário – o de peões – na hierarquia da circulação na cidade, e com atenção redobrada aos símbolos profusamente plantados no chão, invocando a bicicleta, prosseguimos a arrastar malas até encontrar o airbnb onde íamos ficar. Lá encontrámos uma porta estreita, que dava acesso a umas escadas ainda mais estreitas, e nós ficaríamos no último andar. Subimos com as malas como se estivéssemos a carregar móveis, parecia uma mudança, com critérios de avaliação de ângulos e sucessivos encontrões, sem reparo de maior do nosso anfitrião.
Mas como se podem fazer mudanças nestas casas esguias e sem elevador? Ora, se o holandês se soube pôr acima do nível do mar à conta de diques cuja engenharia (Deltawerken) o singulariza, também há-de ter arranjado solução para estas casas magras que se colam umas às outras e se deixam esventrar por umas escadas ruidosas e íngremes. Pois bem, colocaram-lhes ganchos e roldanas nas empenas e ainda as fizeram ligeiramente inclinadas para a frente, possibilitando a elevação pública e exterior do mobiliário dos moradores.
Mas voltemos ao tal bafo da chegada, que tem uma explicação – não sei se exacta – que circulava nas notícias que conseguimos captar: era a Páscoa mais quente dos últimos sessenta anos, na Holanda. Podemos adivinhar o que um país chuvoso e frio grande parte do ano pode sentir com esta dádiva solar. Os holandeses exultavam com um verão que havia chegado mais cedo e mais quente, usando e abusando da rua, mais do que já estavam acostumados a fazer. O espaço público encheu-se de gente, de todas as cores, credos, carteiras, idades; havia esplanadas em todos os espaços onde coubesse uma mesa e uma cadeira, desde as mais aprumadas às mais simples; os próprios moradores faziam a sua esplanada ‘de trazer por casa’, colocando mesa e cadeira na varanda, alpendre ou via pública, tomando ali as suas refeições e os seus aperitivos, de final de tarde. No meio da cidade, havia crianças pequenas a brincar sobre toalhas quadriculadas estendidas no passeio, recebendo aqui e ali o olhar do pai ou da mãe que vinham à porta espreitar. Imaginem vocês abrirem a porta da vossa casa, estenderem uma manta na via pública e deixarem os vossos filhos tranquilamente a brincar. Bom, não quem vive numa pequena aldeia, mas antes numa cidade, para haver critério!
O rio Amstel encheu-se de barcos a circular, com pequenas e grandes festas particulares, com gente predisposta à fotossíntese. O Vondelpark, o maior da cidade, parecia ser palco de um festival de Verão, repleto de gente, a andar de bicicleta (antes de mais), a andar a pé, a fazer todo o tipo de desportos, piqueniques, encontros românticos, reuniões sonoras de músicos amadores, grupos a consumir o produto que celebrizou os coffe shops da cidade, enfim, tudo o que possa ocorrer fazer ao ar livre. E no fim, mostrando que são, mais uma vez, os heróis dos impossíveis, deixam tudo limpo, sem vestígio da sua presença, numa extensão imensa de espaço verde pronta a reutilizar. É verdadeiramente deslumbrante ver como tudo acontece, como se o momento de lazer não se concluísse por si próprio sem assegurar a preservação do espaço.
Por tudo isto, convenci-me de que não visitei uma cidade, mas um acontecimento, numas condições que podem não repetir-se tão facilmente numa qualquer Páscoa, apesar dos avisos sobre o aquecimento global. Foi um sortilégio visitar este país dos impossíveis numa circunstância impossível.
E, como se já não fosse o bastante, para além deste comportamento admirável de superação de impossíveis, há guardada em Amsterdão a luz impossível d’ A Leiteira, de Vermeer ou d’ A Ronda da Noite, de Rembrandt, aquela luz que a realidade parece invejar, a ser admirada num Rijksmuseum… com um nome quase impossível.