Já não andamos a cem, andamos a mil. Tudo tem de ser ontem e perfeito. A competição é enorme e a concorrência ainda maior. Tudo em todo o lado e a toda a hora. A correr para tudo abarcar e nada falhar. E, no entanto, tudo se vai como se nunca tivesse existido.
Um pai esqueceu a filha dentro de um carro. Para ele, a convicção de que a filha estava bem entregue, era o mote. Um dia de calor infernal e a menina fica fechada durante sete horas, no carro. Um bebé que ainda não tinha um ano.
Na creche, não dão pela sua falta. São tantas as crianças que apenas uma não faz ligar o interruptor da sua ausência. Há que chegar a todas. Uma lufa, lufa contínua. Talvez a menina tenha chorado, mas ninguém a ouviu. Os vidros do carro, fumados, também não permitiam que fosse vista. Uma incógnita.
Madalena, nome de tristeza, de tantas e muitas lágrimas, a mais nova de quatro filhos de uma médica e de um professor. Certamente muito amada. A vida, ladra sem vergonha, não a deixou viver, ter as dores naturais e os amores de mais. O seu fim foi sem glória.
Dormia, quando o pai fechou o carro. Deve ter acordado com fome e depois veio o calor e a sede. O desespero. Inimaginável esta situação, mas não é inédita. Que raio de vida esta, a fugir, que se tem de viver. Madalena, um anjinho, ficou na sua pureza.
Culpados? Haverá? A sociedade mediática e acelerada, não se compadece com esquecimentos nem com adiamentos. É tudo para já e agora. Anda-se a uma velocidade exageradamente estonteante e o verdadeiramente importante fica para trás. O pensar que está feito não significa que seja a verdade.
Que vazio fica neste pai e nesta família. Uma tal dor que os fez morrer naquele carro que estava estacionado à vista de todos. Uma parte de cada um não regressa mais e a culpa que fica e que insiste, será o fantasma que irá assolar a toda a hora, com picos de sangue vivo e cores duras que ferem a alma.
Madalena será a lembrança dolorosa que vai deixar uma ferida tão aberta que nunca poderá sarar. Um coração com um remendo e sem linha bem forte para o consertar. Um bebé que não conseguiu pedir ajuda, que não devia ali estar, uma luz que será eternamente mantida na penumbra.
As emoções estão à flor da pele, o choro será mudo e as lágrimas terão uma lixa tão rija que deixa um rasto de sofrimento que não se cala. Por ora é a dor maior que os abraça. Devem ficar unidos neste lamento íntimo, partilhar o quão bom foi a existência de uma criança que era amor e alegria.
O tempo é o melhor conselheiro, mas não fará esquecer, apenas ameniza, com os olhos mais secos e sem o som que o peito encerra. Vai sussurrar que a vida, uma refinada madrasta sem maçãs, continua e, mais tarde, a lembrança da Madalena será de puro e luminoso amor.
Quem sabe se não terão mais filhos, se o ponto de equilíbrio será encontrado e a paz, o que mais devem desejar neste tempo de choque e de incongruência, lhes traga o manto de sossego e a pergunta ” porquê “, repetida vezes sem conta, já possa desaparecer sem causar arrepios e tonturas escabrosas no sentir.