Ainda não foste embora e a cama já cheira a despedida. Observo-te durante largos minutos. O relógio marca 10.10h e tu dormes profundamente. Como é teu hábito, nua, deitada de barriga para baixo, tapada até à cintura, com a perna direita do lado de fora dos lençóis. Neste instante sinto-me nada, as forças faltam, talvez as paredes desabem. Toco-te na pele do ombro, ainda ardente, a descoberto, cubro para não arrefeceres.
(Quando a conheci fiquei preso no sorriso, mas foi o cheiro da pele que me deixou inquieto. Pode um cheiro ser mais do que um cheiro? Pode um cheiro ter a capacidade de perguntar quem és tu, por onde andavas, porque não nos cruzámos antes, pode um cheiro dar a certeza de que conhecemos alguém na sua essência sem nunca a termos visto, pode um cheiro desvendar o caminho do amor infinito?)
O talento, um ponto de vista único e a coragem, fizeram dela uma premiada fotógrafa de guerra. Lembro-me que a editora, na altura comum aos dois, me solicitou que fizesse a apresentação do livro de fotos, “Feeling Gaza”, de uma jovem e promissora fotojornalista. Eu estava no auge da carreira, ela no início. Fora tão encantadora como distante quando fomos apresentados. Lindíssima, irradiava boa disposição mas, ao mesmo tempo, mostrava-se reservada. Cumprimentou-me de forma cordial e pouco efusiva, envergonhada até, agradecendo a minha disponibilidade para estar no evento enquanto figura pública. Trazia o cabelo escuro enrolado numa trança descaída para a frente do ombro esquerdo, umas calças de ganga largas, uns ténis já muito coçados e uma t-shirt com uma famosa frase de Walt Disney, “if you can dream it, you can do it”. Uns grandes e vistosos olhos claros e um ar de anjo reguila, uma combinação explosiva que confirmaria uns tempos mais tarde. Voltámos a ver-nos quase um ano depois. Eu descia as escadas da biblioteca municipal, ela subia, apressada. Reconheceu-me e deu-me um abraço atabalhoado de forma quase instintiva e inesperada. Voltei a sentir-lhe o cheiro da pele e por alguma razão misteriosa recebi o abraço sem me conseguir mexer. Olá, que surpresa, como está, estou bem e como está a venda dos livros e a carreira de fotógrafa, vai tudo muito bem, obrigada, vou esta semana para Jerusalém em trabalho. Foi uma conversa rápida mas no final ainda trocámos contactos e a promessa de um chá quando ela regressasse.
Um sol convidativo entra pelas janelas colossais ao fundo do quarto. Visto daqui, sentado na cama com as almofadas a segurarem as costas, a paisagem é sublime, de uma beleza sobrenatural. Gosto de pensar que as cores da natureza foram inventadas por alguém com uma sensibilidade pouco comum, um génio da harmonia; uma sinfonia inalcançável. Contemplo principalmente o céu, que se ostenta, faustoso, com um tom mais escuro em cima, variando até o azul mais claro se misturar, em baixo, com um laranja descolorido que desenha os contornos do vale. Há folhas e livros espalhados pela secretária e também alguns pelo chão, o computador ficou ligado. O cansaço venceu-me naquilo que supostamente seria mais uma noite de escrita. Encostado a um dos pés da cadeira, aberto com as folhas para baixo, um dos meus livros de estimação, The Collected Artwork, de John Lennon, que comprámos numa pequena livraria de St. James’s, em Londres. Chovia muito e aquele local fora uma desculpa para nos abrigarmos dos pingos frios e desconfortáveis. Folheei o livro, sem nenhuma expectativa mas uma frase do ex-Beatle impulsionou-me para a compra. A mim, que gosto de palavras, nunca um aglomerado delas me fizera tanto sentido: “quem nunca amou jamais terá vivido”. Li, reli e tornei a ler. Olhei-a nos olhos, segurei-lhe o rosto com as mãos e deixei que os meus lábios se voltassem a declarar aos seus. Senti-lhe a respiração acelerada, ouvi um “ai” sussurrado e mais tarde, de volta a casa, deixámos a pele conduzir a paixão.
Durante anos, tive o sonho de morar numa casa de montanha. Gosto desta paz, do aroma a tranquilidade, dos sons a vida. Mais uma vez, o vazio de ti vai ocupar todas estas divisões construídas em pinho nórdico. Vou até à varanda, acendo um cigarro e sento-me no chão com os joelhos junto ao peito usando os braços para me fechar naquela posição, aninhando-me como uma criança amedrontada. O frio da rua contrasta com o perfume quente do amor que ainda vagueia pelo quarto. Ao fundo, a velha ponte de ferro protege o pequeno barco a remos de Herbert. Mais à direita, Tale Kristhor, a inspiradora cascata natural que desagua para o rio Faltrap será o meu amparo nos próximos seis meses. Vaguearei pelo bosque, ficarei horas a reverenciar o nada, aprisionado ao sofrimento da ausência e, de certo, rabiscarei muitas páginas que deixarão de ser brancas e imaculadas angústias.
Sem dar conta, sentas-te ao meu lado, trazes chá acabado de fazer. A tua mão esquerda procura a minha.
Inquieta-me pensar que o tempo, no sentido da durabilidade, não no sentido climatérico, é uma espécie de doente bipolar. Faz questão de ser demasiado lento quando não nos temos e decide, por autoria própria, correr num contra-relógio alucinante quando estamos juntos.
Instala-se um silêncio mortal e a certeza de que será assim até ao resto dos nossos dias.