Na sombra do meu sonho, a vida está longe. Do outro lado da janela. Fechada no mundo fora de casa. Ausente daquela cama e daqueles sonhos que a invadiram. Não interessa a neve, nem o sol, nem o luar. As luzes e os relógios seguem os seus destinos. A vida acontece sozinha, fora de nós, para o bem e para o mal.
Deixo a água encontrar os caminhos do meu corpo, da minha pele, das minhas memórias. De olhos fechados, que é como largamos melhor o que já não interessa. Com a esponja esfrego bem a pele para limpar os últimos restos de sonhos. Mesmo fora da almofada fiquei na incerteza do que era a realidade. Seria verdade que sentia saudades daquele pôr-do-sol num porto desconhecido? Ou nunca o conheci? Há praias e jardins que não sei se fazem parte do mundo em geral ou apenas de mim em particular. Conheço palavras, toques e momentos que estão na minha memória, mas não sei se na real ou se na onírica. Nem sei se são duas ou uma indivisível. Já senti alegrias inesperadas que afinal eram recordações de histórias de livros. Só as tragédias são fáceis de identificar.
Seco-me e visto-me com as incertezas ainda descontroladas. Afasto o vapor do espelho e vejo-me pela primeira vez. Um corvo que se apoia no lavatório sem querer e que se depara com o seu reflexo. Negro, majestoso, único, mas não se reconhece naquele reflexo. E no entanto, entende a totalidade do que o reflexo significa – sai à rua por uma janela aberta e é capaz de voar.
O comboio embala-me os pensamentos, num conforto mental que é raro. Olho para o céu azul, limpo, um único avião a chegar, e penso que afinal tenho medo de não ser tudo aquilo que creio que sou. Passamos naquela esquina onde está uma igreja antiga e simples. A pedra branca era uma luz na cidade escura. Costumava lá ir acender velas a um deus de quem era íntima na altura. Não sei quando nos separámos. Nem sei qual de nós dois mudou. Observo-a com o estranho carinho dos velhos amigos com quem já não temos nada a ver. Um carinho que é só memórias e passado. Um carinho que não existe mas que o nosso coração quer reconhecer. Recordar.
Crescemos quando sabemos que nem todos os momentos estão em escalas morais de bom e mau, nem de escalas quantitativas ou qualitativas. Há coisas que apenas são. Também existe o direito à tristeza e à imperfeição. Impressiono-me ao descobrir que o mundo é um teste de Rorschach – cada um de nós percebe a realidade de forma diferente. Nada é igual – nem a vida, nem as cores, nem os processos mentais, nem as memórias. Muito menos as acções. Nada é exactamente igual, mesmo que lutemos por manter essa fachada.
Ali à frente, uma pequena feira. Uma menina sentada num banco mesmo ao lado observa as bolas de sabão que nascem com o seu sopro, que levam um pouco do que ela também é. Não seria maravilhoso que aquelas bolas levassem aquele ar inocente e infantil para todo o mundo? A menina sorri-me. Um sorriso que tinha sido o meu há muito tempo. O carrossel gira. Não se ouvem os gritos (de medo, de alegria) se pusermos algodão nos ouvidos, e a música fica mais ténue, quase um encantamento. Sentamo-nos num banco a olhar e só vemos que gira e gira. Carrinhos, cavalinhos, bicicletas, coches, chávenas. Um dos meninos levanta-se e quer sair, chora à procura da figura borrada da mãe e estende os braços para o mundo. A mãe corre à volta do carrossel, diz-lhe que não pode sair porque o carrossel ainda se mexe, ainda continua a girar, e se o contrariarmos acabamos tontos ou magoados. O menino parece desesperado no carrossel, como se não soubesse o que estava ali a fazer. Também eu desespero nos meus carrosseis, também acordo neles sem saber como lá fui parar. Calo o meu cérebro. Sei todas as metáforas que surgem naquele carrossel, mas opto por desistir delas.