A essência da tolice

A profusão de frases e citações sobre estupidez são abundantes. Até livros e artigos são comuns de serem encontrados com relativa facilidade e em conversas, por vezes, lá se escuta um: como é que é possível alguém tão inteligente ter feito isso?

Se consultarmos um qualquer dicionário encontraremos como definições: falta de inteligência e de delicadeza de sentimentos; acto ou expressão de estúpido. Se formos um pouco mais curiosos e procurarmos pela última parte (estúpido), leremos: que não tem ou não desperta interesse; que não tem razão de ser; que não faz sentido; que ou o que tem grande dificuldade em compreender, julgar ou discernir por falta de inteligência

Quando se aborda o tema da estupidez é frequente, por quem escreve ou fala, adotar uma posição de superioridade, como que se desse o caso de o tonto ser culpado da tolice que fez (em parte é, admitamos). Invariavelmente, os tontos são sempre os outros e esquecemo-nos de que todos podem cometer tolices, até porque nem sempre refletimos antes de tomarmos decisões ou quando refletimos, nem sempre consideramos que podemos não estar na posse de todas as informações necessárias ou cedemos ao que responde mais facilmente às nossas vontades.

Então, quem é, afinal, o tonto? O tonto seria, então, a pessoa que não pensa, que está presa a dogmas e a ideologias, que age por impulso e que se recusa a ter uma postura de questionamento da realidade que o rodeia e que, mesmo assim, se acha na posse da razão.

O tema da tolice não para por aqui, porque até nas questões mais óbvias se nota uma certa altivez. O que acontece quando uma criança pergunta aos pais porque a relva é verde? Alguns pais poderão responder que ser vivo tem a sua coloração e que as plantas são maioritariamente verdes. Outros, talvez importunados por tantas questões, rematarão o caso com um “porque sim”. Ainda haverá quem, tentando disfarçar a falta de conhecimento (ou por quererem estimular a prática da pesquisa) oriente a criança a fazer a pesquisa por ela própria e, mais tarde, responder com o que encontrou.

O que acontece quando uma criança pergunta porque o céu é azul e as nuvens são brancas? Porque existe arco-íris? Porque é que para comer temos de usar talheres e não as mãos? O que é isso de portar bem? Se, na história da Cinderela, após a meia-noite tudo regressou à sua forma original, porque ainda ficou um sapato de cristal? Não deveria ter revertido à sua forma original?

Estes exemplos ilustram como nascemos com um espírito inquisidor saudável, mas que se vai transformando ao longo do nosso crescimento, seja porque somos desincentivados pelos familiares próximos, especialmente quando respondem com um “porque sim” ou com “não faças perguntas tolas”, ou pelo contexto onde nos inserimos.

Reconhecendo que todas as pessoas podem cair na estupidez, isto é, que não há imunidade contra este mal e que todos podem cair nele, acredito que o ato diz mais da pessoa do que da condição de estupidez, nomeadamente, da parte das definições que a reduzem à falta de inteligência. É o excesso de confiança, que se materializa na soberba de tudo conhecer, e a posse de muitas certezas, que não dão espaço à dúvida, que fomentam as tolices.

A capacidade de se questionar, contudo, evita o viés de confirmação, mas também permite escapar das armadilhas da desinformação, e julgamentos precipitados. E é essa capacidade de questionar e de ver para lá das crenças e inclinações individuais que permite evitar tolices, até porque se existe algo que podemos aprender com a História é que até as pessoas mais inteligentes podem ser tolas.

Se Napoleão não estivesse tão cheio de si, saberia quando retirar as suas tropas, mesmo quando todas as evidências apontavam para uma derrota da campanha na Rússia. Se o Japão não tivesse subestimado a força militar dos Estados Unidos da América, jamais atacaria Pearl Harbor; se os Estados Unidos da América não sobrestimassem as suas reais capacidades militares, jamais invadiriam a Baía dos Porcos, em Cuba, ou se envolveriam na Guerra do Vietname.

Em última análise, a estupidez é um fenómeno complexo que pode afligir até mesmo os mais inteligentes. No entanto, ao reconhecermos a importância da humildade intelectual, do questionamento constante e da abertura para novas perspetivas, é possível mitigar as tendências para as tolices.

É importante lembrar que a verdadeira sabedoria reside não apenas na acumulação de conhecimento, mas também na disposição contínua para desafiar as nossas próprias crenças e procurar uma compreensão mais profunda do mundo que nos cerca.

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