A polémica ainda não acalmou, nem me parece que tal vá acontecer. Todos têm uma opinião sobre os temas que não dominam. Faz parte do ser humano. Fala-se por falar. Ninguém tem o dom da justiça. As circunstâncias da morte de Odair Moniz vestem-se com uma capa estranha. Subitamente todos são as testemunhas cruciais.
Coloca-se tudo em causa para defender uma causa que já perdeu a razão. Toda a violência que se tem verificado, com danos elevadíssimos, uma vida humana tem o valor maior, difíceis de contabilizar com as respectivas sequelas e marcas que não se apagam, têm o condão de separar gentes em vez de se unirem.
A ausência de lucidez, ou a ignorância, porém, não impediu que nos últimos dias esse fosse tema único de telejornais, marchas, slogans e ainda um gigante e incrível aproveitamento político. Uns são os tais, os certos, os donos de coisa nenhuma e os outros são os errados, os que nem deviam existir. Subitamente só se verificam vítimas.
Perante este cenário onde estão os agressores? Este sentimento de coitadice que está muito em voga, tolda a visão dos factos, sim, o incontestável, dando palco a cenários que nem pertencem à realidade. Os jornalistas esqueceram a sua missão e deixaram de verificar o que “lhes contam” para ter o “furo”, o “exclusivo” de uma ficção perigosa. Então as versões sucedem-se, como se tal fosse verídico.
Já o ataque ao Tiago, o motorista da Carris, um homem de trabalho, que o deixou queimado gravemente e numa cama de hospital, prova onde reside a perversidade. Contudo não motiva grande interesse. É como se não existisse e o bizarro ataque nunca sucedeu. Foi fruto da imaginação de um grupo que vê muitas séries e que se esqueceu de desligar a fantasia. Só que não.
O Tiago, que não tem apelido, não é a vítima que tem o brilho estrelar nem sofreu às mãos dos agressores do momento. Tiago não serve as agendas políticas nem as jornalísticas. É um invisível, um tipo qualquer que apenas cumpria o seu dever, conduzir um autocarro. O que muitos ignoram, talvez por nunca se terem servido de um autocarro, é que o Tiago tinha as vidas dos que com ele seguiam, à sua responsabilidade, assim como a sua.
Contudo, o seu infortúnio é uma miragem. No que toca à realidade, ele, o Tiago sem um qualquer apelido, um anónimo que tinha um mero volante nas mãos e a vida dos passageiros a ser tida em conta, não serve para nada. Quanto menos se falar dele, melhor. O preferível é esquecer que ele existe.
O Tiago é a maior vítima pois além de estar votado ao esquecimento, muito provavelmente não voltará a ter uma profissão, ficará com marcas indeléveis no corpo e outras ainda piores, na alma. É um homem novo, tem cerca de 40 anos e ficou com a vida em suspenso. O Tiago, um motorista, estava a trabalhar, a dar a sua contribuição para a sociedade.
É esta a sociedade que grita pelos ideais dos países alheios e fecha os olhos às misérias e desgraças que acontecem na sua casa. Isso não dá relevo. As paragonas não têm este episódio como meta. Afinal a culpa é do país que gosta de ter os outros como os brinquedos principais. Nunca os seus. São invisíveis. O que torna ainda mais bizarra toda esta situação, é a ausência de empatia, para não falar em sentido de responsabilidade, de quem nos governa, ou pelo menos, nos representa. Os abraços e beijos já não fazem parte de uma agenda política que está a chegar ao fim, sem possibilidade de repetir uma posição cimeira.