A 21 de Setembro estreou “Andor”, uma série que, para mim, é o que Star Wars anda a precisar: algo focado na narrativa com diálogo plausível, cenas mais maduras e atores experientes em ambos teatro e cinema. O meu filme favorito é Rogue One, por isso considerem-me enviesado. Fan service é bom, mas tem o seu momento, e procuro algo com mais seriedade e nuance.
O que Rogue One e Andor têm em comum é a forma como conseguem que audiência simpatize com os tipos maus, também retirando a santidade aos tipos bons. Aqueles que servem o Império ou as Corporações debaixo do seu chapéu vivem realidades que os incorporam no modo de viver do poder hegemónico, tolerando ou mesmo acreditando em informação que reforce as suas identidades e estatuto dentro da máquina Imperialista. Do outro lado reconhecemos que é impossível combater um poder hegemónico sem subversão, corrupção e neutralização de alvos chave, logo é totalmente plausível e expectável que os Rebeldes e a República financiem propaganda, células terroristas em vários planetas, espionagem, assassinatos e tráfico. Portanto, agem exatamente da mesma forma que as forças do Império agiam antes de o ser, ainda que difiram na sua ideologia doméstica e interplanetária.
Conflitos e políticas reais influenciaram George Lucas na criação dos seus filmes e do seu Universo, e continuam a desenhar-se paralelos entre o fictício e o real. A Internet e redes sociais são o mais recente campo de combate, opondo dois grandes poderes numa guerra de informação. Qualquer pessoa tem na ponta dos seus dedos ferramentas para localizar a fonte de vídeos, documentos e fotografias, declarando, após provas concretas e fontes confiáveis, chegar a um consenso sobre a veracidade do que nos aparece no ecrã. Só almas obcecadas com detalhe (e com disponibilidade) conseguem focar o tempo para esta tarefa, e não falo de especialistas na área de inteligência ou programação. Falo de indivíduos de classe média que entraram por acidente num portal onde o caos reina e não existe certeza do que é verdade, e entram numa cruzada pessoal para encontrar essa verdade.
O pior é que a luta tem uma frente interna e externa, com grupos de interesse omitindo ou distorcendo factos para fins políticos e pessoais no meio doméstico, e às vezes auxiliados por grupos de outros países, geralmente mais potentes, que aproveitam as vulnerabilidades sociais de uma comunidade para semear dúvida e manipular a opinião pública a favor de uma visão ideológica diferente. O mundo de hoje é um de extremos, e quando se fala de diferente fala-se quase de oposto polar, criando brechas na ordem liberal para corroer as suas instituições e com elas a democracia.
A vida acaba por ensinar que cada sociedade consegue ter uma visão muito própria do que é a democracia, mas, para evitar cair noutro buraco, vamos concordar que a democracia, mesmo que imperfeita, é o melhor que temos por nos oferecer eleições livres, liberdade de expressão, direitos humanos e um mercado livre. As outras potências como Rússia e China não são, de todo, um exemplo disto, embora possamos considerar a China um país com uma economia planeada e imensa corrupção que abraçou o capitalismo e consolidou a sua influência no mercado global. Se há prova que o capitalismo resulta é que este conseguiu vender o comunismo aos comunistas.
Regimes autoritários têm também usado desinformação para consolidar o seu poder doméstico, como por exemplo, publicar histórias manipuladas através de aparelhos do estado e implantar batalhões de utilizadores nas redes sociais, criando a perceção que existe um apoio de raiz ou popular. Mesmo que estas noticias se fiquem por casa, o método é certamente exportado e aplicado por grupos extremistas à esquerda e à direita, fabricando narrativas que corroem a confiança dos eleitores nas instituições democráticas, e influenciando as suas reações para política mais autoritárias que acabam por alinhar com um ou outro super-poder autoritário do ponto de vista da política internacional.
Não é necessário a Rússia hackear as sondagens ou resultados das urnas para esta ter o que quer. Basta influenciar a opinião pública. Com os eleitores decididos que não existe certeza de nada, o ceticismo passa a cinismo, deixando de ter confiança nas eleições, no funcionamento do governo e até no seu próprio papel como atores no processo democrático. Não me surpreende nada ver um político mentir, fazer spins, e espalhar propaganda. Também faz parte, inclusive o populismo, que nem sempre divide o povo e as elites, mas realça problemas legítimos que afetam a classe trabalhadora. Toda a política dos EUA tem tido traços populistas bem antes de Trump. O que continua a surpreender é como alguém que nasce e vive nas democracias liberais do Ocidente consegue com plena consciência tomar a posição de países autoritários nas várias matérias.
Um país como a Rússia, por exemplo, sempre teve historial de repressão social, manipulação da verdade e revisionismo histórico. Mikhail Gorbachev implantou a Glasnost, que embora tenha contribuído para a queda da União Soviética, do ponto de vista ocidental foi uma breve era de liberdade de expressão e de mercado. Mas pouco durou e as elites tornadas oligarquias abraçaram o “Gangster Capitalism” com Putin mais tarde, ex-KGB, a tomar o elmo e dominar todos os outros jogadores. A liberdade de expressão ficou-se como superficial e tolerável até morder nas elites Russas, e grande parte das regiões tornaram-se depressivas e dependentes dos subsídios de Moscovo. Ou seja, a Rússia, ex- USSR, ex-Império Russo, sempre governou com punho de ferro e viu a inteligensia como um bando de idiotas úteis que merecem ser domesticados, ao contrário das democracias ocidentais que apesar de todos os defeitos toda a informação é legalmente e livremente sujeita a corroboração popular em conjunto com académicos, e o povo tem imenso poder na ponta dos seus dedos. O politicamente correto, nacionalismo e populismo tentam consecutivamente minar esta função básica de uma sociedade livre, conquanto a toalha continua longe de alguma vez ser deitada ao chão.
Propaganda em tempo de guerra é normal, venha esta do invasor ou invadido, a questão não é essa. Há pouco tempo vimos uma situação caricata na televisão onde um comentador pró-Rússia citava um artigo onde uma palavra usava aspas. A comentadora do outro lado da mesa insistia que a palavra tinha aspas, contudo o comentador insistia que não havia aspas. Quem fosse ver o artigo via que a palavra tinha, de facto, aspas; outra situação caricata aconteceu no twitter: um comentador “neutro”, “sem enviesamento”, “que só mostra os factos” curiosamente favorece sempre a Rússia e publica tweets obviamente controversos. Um outro interveniente resolveu contestar os pontos abordados pelo comentador, que foram a priori desmentidos. O interessante nesta troca de palavras é que o interveniente simplesmente usou as próprias palavras que o comentador usou uns meses antes, mas que agora estava a “desmentir”.
Não estamos a falar de gente burra ou incompetente. O mais assustador é ver a desinformação disseminada por atores conscientes do que estão a fazer, percebendo do assunto e com os respetivos canudos com que se gabar. É perfeitamente possível que, embora a grande parte de nós tenha o privilégio de aproveitar as liberdades que nos são garantidas no grande esquema, na esfera familiar e social certas pessoas não tiveram esse privilégio ou certas sub-culturas religiosas e ideológicas criaram aversão suficiente a certos valores normalmente associados ao ocidentalismo. Não será muito diferente do modo de doutrinação de grupos terroristas, gangues ou seitas.
Os valores que cada um mais preza como os mais tradicionais, família, identidade nacional e religiosa são também defendidos por Putin, que tomou o papel de seu guardião e com isto ganha a simpatia de algumas fações da direita radical e da extrema direita. Por outro lado, o seu anti-ocidentalismo, anti-NATO, anti-hegemonia Americana e respetivo anti-[neo]liberalismo ganha a simpatia da esquerda radical e extrema-esquerda. Mesmo os países autoritários e ultra-nacionalistas conseguem expandir uma política externa que visa acordar simpatizantes noutros países igualmente desencantados com as democracias liberais, e por consequência alimentam extremismo violento, descriminação e corrupção. Com bastante sucesso as suas narrativas anti europeias e anti americanas permitiram a radicais tornarem-se “idiotas úteis” desinibidos de monitorizar os seus pares online, intimidando jornalistas, empresas, figuras da oposição, minorias, e figuras políticas com o suporte de quadrilhas online.
Outro motivo do apoio à Rússia é o anti-globalismo. A direita radical acusa o globalismo de corroer os valores tradicionais, semear o nihilismo, e o multiculturalismo que reforça os guetos em certos países – como a Suécia – onde as comunidade de imigrantes, longamente ignoradas sem qualquer modo eficiente de integração, estão culturalmente e totalmente dispares da nação que os acolhe; a esquerda radical tende a associar o globalismo ao capitalismo e consumismo desenfreado. A inata propensão da esquerda para apoiar minorias motiva-os a “desconstruir” o Ocidentalismo e substitui-lo com mitologia oriental, sugerindo o ressurgimento do Orientalismo. Mas também há motivos bem mais simples e populares, e que juntam os radicais de esquerda e direita, como por exemplo, a Rússia deve ser perdoada pelas suas ações porque o Ocidente já fez o mesmo ou pior algures, ou que o Ocidente não tem nada que se meter nos assuntos do Oriente e agora tem simplesmente o que merece por meter o nariz onde não é chamado.
Os grupos que não perdoaram o imperialismo Europeu na África e Médio Oriente perdoam hoje o imperialismo Russo em pleno território Europeu, simplesmente por isto: cosmovisões muito pessoais sobre o mundo, partilhadas em ferramentas que só a ingenuidade das democracias liberais pode oferecer, que acabam por ter consequências na ordem pública. Conquanto as duas situações acima referidas não mostram somente a influência da cultura na formação de opinião pro-autoritarismo. É preciso ter muita coragem para reconhecer um erro e admiti-lo publicamente, e é preciso muito tato para balançar os compromissos de uma democracia imperfeita com o de uma “autocracia eleitoral”. O que fica a descoberto é a arrogância dos apoiantes destes regimes, que não abrem mão do seu ego em prol do bem da comunidade, tão naturalmente atraídos por um “Homem Forte”. Isto não é apelar à censura de opiniões pró-Rússia, pelo contrário o ponto aqui é que democracias liberais permitem que tais ideias opostas ou erradas circulem. Também reconheço que quem paga as brincadeiras económicas vindas de Moscovo, e as sanções aplicadas pela Europa, é a classe trabalhadora que enfrenta preços altos e um inverno desafiador.
A questão do porquê do resultado das correntes guerras serem tão importantes para a permanência do mundo livre com que nos habituámos, e estar a deixar de saber aproveitar, fica para outra altura. A questão da desinformação tem um pouco da adivinha do “ovo e da galinha”: a informação engana o povo ou o povo simplesmente já tem queda para ouvir o que quer? Eu não sou exemplo no que cabe a paciência para “converter” extremos e puxá-los para a moderação, e perdi a calma para discutir com saudosistas soviéticos, mas estou consciente que grande parte da política é feita à porta fechada, principalmente na forma como abordamos temas e aqueles que discordam de nós. Ao fim do dia temos exemplos como a Itália onde o povo escolheu uma coligação liderada pela direita radical para seu governo, e a opinião do centrão português, por exemplo, está em considerar o povo como burro, que não sabe o que é melhor para eles e meter medo da direita radical portuguesa simplesmente por ter esse rótulo. “Educar” o eleitorado, na prática, é demonizá-lo, e isto só dá poder às mentiras que os convenceram.