Lobo espetou uma coronhada no maxilar do negro e este cuspiu um par de molares na calçada. Vasculhou a carteira: quatrocentos euros, um bi de um país africano qualquer – Sulemane, dezassete anos. Meteu o dinheiro ao bolso. Os molares de Sulemane nadavam numa sopa de sangue e saliva. Sulemane mantinha-se encolhido, agarrado ao queixo, os olhos de porcelana revestidos de uma película húmida, os lábios grossos, esmurrados, ainda mais salientes. Apontou a pistola à cabeça do miúdo e ouviu-o rezar em árabe. Destravou a pistola e o miúdo acelerou a prece. Lobo disse: ‘se o que estás a fazer é pedir clemência, então fá-lo em língua portuguesa, a língua que se fala nesta cidade.’
‘Por favor,’ implorou Sulemane.
Lobo sentia-se empanturrado pelo jantar. Puxou o cão à pistola e voltou a exibir a fotografia no ecrã do telemóvel e o puto voltou a jurar que não era o retratado. Lobo deu-lhe uma patada na anca e o puto tombou na calçada. Passava das três da manhã. Agachou-se, agarrou o chavalo pelo colarinho e fotografou-lhe o rosto, certificando-se que usava flash.
*
Descansou a cabeça no peito generoso de Ramona.
Ramona sorriu e fez-lhe uma festa no rosto, gesto que ia para além do preço do alterne.
Eram amigos, criaturas nocturnas em vias de extinção.
Lobo endireitou-se no banco, gesticulou para que lhe servissem outro whisky. Mostrou a fotografia de Sulemane. ‘Se alguma vez cá vier, trata-o bem,’ instruiu.
Ramona observou a fotografia. ‘Enganaste-te outra vez, querido?’ perguntou, comiserada com o rosto amassado do miúdo.
Lobo respondeu que sim, que se enganara outra vez, que havia três anos que andava à caça, enganando-se uma e outra vez.
Um milhão de imigrantes… Quantos destes andariam por Lisboa com brincos de diamante? Quantos haviam atravessado o Mediterrâneo com a intenção de matar uma mulher inocente que regressava a casa da faculdade depois das aulas nocturnas?
Ramona pediu licença. Era a sua vez de dançar.
Lobo esvaziou o copo de whisky, pediu um shot de tequila.
Ramona regressou. Trocara de vestido.
Lobo encomendou outro cocktail de champagne para ela.
Ramona falou-lhe ao ouvido para ser entendida por cima da música: ‘Anda um africano a causar sensação num cabaret de Alvalade. Apelida-se de Shaka, é alto e magro e dizem que usa brincos de diamante.’
‘Dizem, quem?’ perguntou Lobo e Ramona apontou com o queixo para a miúda negra sentada sozinha num dos sofás circulares. ‘Chama-a,’ instruiu e Ramona fez sinal para que a colega se aproximasse.
Lobo mostrou a fotografia do assassino à miúda: o rosto indecifrável, os brincos a cintilar, alto e magro, a posar montado numa mota de alta cilindrada numa avenida do Parque das Nações.
A miúda confirmou ser aquele o homem a quem ela se referira quando Ramona lhe contara a história de Lobo, o polícia que havia três anos buscava o assassino da esposa.
Lobo levantou a voz ao ouvido da miúda: ‘De onde o conheces?’
A miúda encostou os lábios ao ouvido de Lobo: ‘Conheço-o do cabeleireiro africano dos Restauradores.’
*
Sentou-se na tampa da sanita. Olhou para a fotografia. Apontou a pistola ao ecrã do telemóvel, apontou a pistola à cabeça, deixou tombar o braço. ‘Encontrei-o, filha,’ soluçou entredentes. Limpou as lágrimas. Montadas nas costas do telemóvel, enfiou duas linhas pelas narinas.
Quando abriu a porta do cubículo, estavam lá Ramona e a miúda, esta com uma folha de papel na mão.
Ramona explicou que a miúda precisava de quem agilizasse a autorização de asilo, que era o mínimo que Lobo podia fazer, considerando a coragem de Zeinabo que fugira de uma guerra civil.
Zeinabo sorriu para Lobo e entregou-lhe a folha de papel.
Uma mulher eslava, grande e forte, e uma miúda africana com um rosto lindo, ambas seminuas, paradas à sua frente no wc dos homens.
Lobo afastou-as da sua frente, o pedido de asilo numa mão, a pistola na outra, e saiu, abrindo caminho à cotovelada por entre os noctívagos até entrar no carro que estacionara em cima do passeio. Que raio tenho eu a ver com a guerra em África? perguntou-se, debruçado sobre o tablier, a cheirar outro par de linhas paralelas como os carris do eléctrico.
*
Shaka dançava no centro do palco, mascarado de zulu, manuseando arco e flecha como parte da coreografia. O barman aproximou-se. Com um gesto, quis saber se Lobo bebia.
Lobo mostrou-lhe o ecrã do telemóvel.
‘Não, não são a mesma pessoa,’ informou o barman. Shaka vinha não sabia de onde. Aparecera ali a propor aquele acto e a clientela gostara. Serviu um whisky a Lobo.
Lobo observou Shaka a dançar e comparou-o uma vez mais com o sujeito da fotografia montado na mota, defronte do centro comercial. Eram todos iguais.
O espectáculo terminou e o público bateu palmas. Shaka fez uma vénia, mandou beijinhos e agradeceu em inglês antes de desaparecer para lá dos panos de cena.
De arma em riste, Lobo subiu ao palco e pontapeou a porta de acesso aos bastidores. O camarim estava deserto. O arco e a flecha jogados ao chão, os adornos leopardados pendurados nas lâmpadas do espelho de luz, um cigarro a queimar no cinzeiro, um grama de cocaína num quadrado de vidro. Alguém se chibara.
Lobo sentou-se ao toucador, provou um mindinho de coca, regressou ao bar. Puxou pela gravata o barman e deu-lhe uma cabeçada, manchando-lhe de sangue a camisa branca de mangas cavas. Quando se preparava para iniciar a fase do interrogatório em que empregaria o método da coronhada, Lobo sentiu pressão na nuca: reflectida no espelho da garrafeira, uma mulher asiática apontava-lhe uma ruger à cabeça. Lobo soltou a gravata do barman e, de mãos no ar, voltou-se para a mulher, empunhando ainda a pistola apontada ao tecto.
Sentiu dois canos serrados atrás da orelha, tirou o dedo do gatilho. Era o barman, pronto a fazê-lo pagar pelo nariz partido.
A mulher exigiu-lhe a arma e Lobo obedeceu, pousando-a sobre o balcão.
O barman aproveitou e apagou um cigarro nas costas da mão de Lobo que se virou a ele e dele levou uma coronhada.
*
Despertou com um balde de água fria, amarrado a uma cadeira. O barman mantinha a caçadeira apontada à sua cara. Shaka, o zulu, regressara aos bastidores. A mulher asiática falou na língua dela e Shaka traduziu: ‘O que queres daqui?’ Lobo estrebuchou na cadeira. Gritou, mas tinha uma meia enfiada na boca. Pôs-se de pé, sabendo ter os tornozelos atados, e deixou-se cair para a frente, o mais próximo possível do negro. A mulher deu instruções e Shaka sentou-o à força. Tirou-lhe a meia da boca. ‘Tu!’ vociferou Lobo. ‘Mataste a minha mulher. Estou aqui para te cortar a garganta.’
Shaka dirigiu-se à mulher na língua dela. A mulher falou e Shaka traduziu: ‘Essa acusação não faz sentido. Quando foi cometido esse assassinato que queres vingar?’
‘Três anos,’ respondeu Lobo e Shaka traduziu. A mulher asiática riu-se e deu nova instrução a Shaka que foi buscar um passaporte ao interior de um cofre embutido na parede.
Shaka colocou uma cadeira defronte de Lobo onde a mulher asiática se foi sentar a falar enquanto folheava o passaporte de Shaka, apontando para o carimbo posto cinco meses antes, à data da entrada de Shaka no país.
Shaka traduziu o fim da argumentação: ‘O meu associado entrou neste país, pela primeira vez, em Agosto deste ano, oriundo da Guiné, depois de atravessar seis países para embarcar numa balsa em Trípoli. Foi-me enviado por outro associado que gere uma casa nocturna em Bissau onde este homem interpretava uma versão da tragédia grega Édipo-Rei encenada numa Tebas de caniço.’
Shaka fez uma pausa.
A mulher, então, acrescentou que, dada aquela evidência, não havia dúvida que Shaka, previamente Tirésias, o adivinho cego, estava inocente do crime de que Lobo o acusava. Devolveu o passaporte a Shaka que foi guardá-lo no cofre.
‘Mas é ou não é o homem da fotografia?’ perguntou Lobo e Shaka traduziu a pergunta e a resposta: ‘Não, não é o mesmo homem. O homem na fotografia é evidentemente senegalês, muito provavelmente da região de Casamance.’
Lobo deixou cair a cabeça. A mulher levantou-lhe o queixo. O barman encostou-lhe os canos serrados à testa.
‘Podes ir,’ disse Shaka e cortou os nós que prendiam Lobo à cadeira. ‘A senhora diz que senegaleses circulam sobretudo na zona de Algés. Acrescenta que o homem na fotografia se chama Abdel e é um reputado assassino, vocação adquirida nos tempos em que, antes de emigrar, combateu na guerrilha separatista.’
Lobo esfregou os pulsos trilhados. Sob coação da caçadeira, dirigiu-se à porta. Foi empurrado para a rua e a porta de ferro fechada contra as suas costas. Através do postigo, foram-lhe devolvidos a arma e o telemóvel. Estava de volta à noite fria.
*
Acordou com o tinido insistente da campainha, passava das três da tarde. O coração batia acelerado, os pulmões estavam cheios de fumo, as narinas entupidas com ranho coagulado. Acendeu um cigarro e foi abrir a porta, sabendo de antemão quem era.
Basílio entregou-lhe um café em copo descartável e uma garrafa de água.
‘Dez minutos,’ disse Lobo e desapareceu na casa-de-banho, deixando o parceiro no hall de entrada onde havia uma estante com livros, sobretudo álbuns de banda-desenhada.
Basílio gritou a perguntar onde estavam os Michel Vaillant.
Lobo jogou a beata na sanita. Lavou a cara. Quarenta e nove anos. Rosto envelhecido, dentes amarelos, olhos raiados, pêlos fora do sítio.
Basílio chamou outra vez, reclamando que, se ele ia demorar, lhe informasse da localização dos Vaillant, nomeadamente de O Homem de Lisboa, aquele com cenas no rali de Portugal.
Lobo estava pronto. Tirou o albúm da estante e entregou-o a Basílio. ‘Leva, lês em casa.’
*
Os senegaleses paravam no jardim do aquário Vasco da Gama, reunidos em redor de marabus que professavam, à vez, diferentes interpretações das escrituras.
Lobo e Basílio vigiavam desde o interior do carro. Não tinham ainda identificado Abdel por entre aquele bando de homens sem actividade, vestidos com túnicas femininas, reunidos em círculos conspirativos, refundidos por entre as árvores. ‘Não estamos em África,’ rangeu Lobo entredentes.
‘A culpa é do Vasco da Gama,’ respondeu Basílio, orgulhoso da ironia, tentando, como sempre, aligeirar o humor do parceiro.
Lobo mandou-o calar. Um dos negros separava-se de um dos círculos. Era alto e magro, e quando atravessou uma clareira aberta por um intervalo entre a copa das árvores, os brincos de diamante cintilaram. Lobo consultou a fotografia. Era o gajo. O negro entrou no edifício do aquário. Lobo deu ordem e ele e Basílio seguiram-no.
Um torniquete impedia-lhes a passagem. Lobo exibiu o distintivo. Por detrás do guichet, o funcionário brasileiro explicou que o torniquete só girava ao ler o código de barras impresso no bilhete. Havia preço para nacionais e havia preço para estrangeiros. Bastava apresentar identificação com fotografia, requisito que, naquele caso, inviabilizava o distintivo da polícia.
‘Caralho,’ desabafou Lobo. ‘Tens dinheiro?’ perguntou, já o parceiro, uma vez mais, se antecipara, estendendo uma nota de vinte no tabuleiro que o brasileiro fez girar, primeiro para si, depois para a posição inicial com os ingressos e o troco. Lobo e Basílio empurraram o torniquete, saindo da luminosidade de Outono e entrando no corredor surreal do aquário.
Abdel estava lá, aos pés do jazigo da lula gigante. Com uma sequência de gestos técnicos, Lobo deu instruções a Basílio para que contornasse o edíficio e se fosse colocar no extremo oposto do corredor a fim de bloquear a fuga do africano. Basílio copiou e saiu pela saída de emergência, deixando Lobo sozinho com o presumível assassino.
Perfilado para Lobo, Abdel disse: ‘Em Dakar, a capital do meu país, existe, na marginal de La Corniche, um iate-clube, o Le Lagon, que tem um pontão que entra pelo mar adentro e que é onde os franco-descendentes apanham banhos de sol. Eu fui trabalhar para lá em miúdo, até ao dia em que, distraído a olhar para a Ílle de Goré, não dei conta de uma criança que descia para o mar bravo pela escada de corda. Os pais tinham pedido que olhasse por ela, uma menina, mas eu, distraído, quando dei por isso, a criança tinha desaparecido. Chorei baba e ranho, de joelhos aleijados nas ripas de madeira envernizada com verniz marítimo, com o chapéu de marinheiro nas mãos, a jurar que tinha sido uma lula gigante a levar a menina. O monsieur Guy, sócio-gerente do Le Lagon, velho lobo-do-mar, campeão de pesca desportiva, peitoral e ombro esquerdo deformados por uma dentada de tubarão, atou-me os pés e as mãos e atirou-me ao mar como castigo, oferecendo aos pais da criança olho por olho, dente por dente. Eu, que nunca soube nadar, fui salvo pela ondulação que me devolveu à praia.’
Lobo avançou pelo corredor.
‘Na Ílle de Goré,’ continuou Abdel, ‘na Casa dos Escravos, apontam-se os portugueses como principais fomentadores do esclavagismo. Mas eu não culpo os portugueses. Vim para Lisboa e gosto de aqui estar.’
Lobo disparou um tiro à queima-roupa na têmpora de Abdel e este caiu de borco na vitrina. Saiu da penumbra do aquário para a luminosidade do estuário do Tejo. Não sentia o alívio que esperara sentir. Sentia-se exactamente na mesma, como sempre se sentia, sozinho e com a cabeça feita em água.