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Desafiar o Universo

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Estava melodramática. De cabelos despenteados e olhar irritado, escrevia páginas que rasgava e amachucava e, digno de filme, atirava contra as paredes ou para o lixo. Fazia questão de ter as bolas de papel todas no chão, para ver o cemitério da sua loucura. Cada vez que olhava de frente para aquela falta de inspiração sentia-se ainda mais desesperada e tentava prender as ideias, agarrando-as da mesma forma que se agarra o fumo. Fugiam-lhe, e por mais que ela lutasse, por mais que ela tentasse engatá-las de alguma forma, com promessas de que um dia seriam famosas e lidas, as ideias ignoravam-na. Raiva. O desespero começava a transformar-se em raiva.

Claramente aquele masoquismo artístico não estava a resultar.

Levantou-se da cadeira com dramatismo. Pegou em todos os papéis mortos no chão e colocou-os no lixo da cozinha, longe da vista e do coração. Dramática, sempre tão dramática no que tocava à escrita, no que tocava a escrever. Deveria reservar o dramatismo para o papel, mas insistia em trazê-lo para a sua vida. Perturbava-a e arrependia-se, mas custava-lhe ser de outra forma. Quem disse que ela era para sempre? Quem disse que não poderia vir a ser outra pessoa, e outra e outra e outra ao longo da sua vida, mais coisas como se se recortasse e se colasse, como se morresse e se transformasse, como se mudasse e evoluísse e retrocedesse um passo e desse mais cinco a seguir. Baralhava-se no seu drama e tinha vontade de gritar e bater com a cabeça na parede, com os punhos no chão, de contorcer-se como um gato na sua ansiedade. De rasgar a pele e deixar que tudo nela saísse, voltasse e descansasse.

Dramática.

Ansiosa.

Não devia ter bebido aquele café todo.

Senta-se de novo e olha para a folha em branco, com medo de tentar e de errar. De brincar com tempos e verbos e palavras. Lembra-se da consulta de tarot do dia anterior, da mudança que a espera e da hora que aí vem. Que aí vem. Que aí vem. Não quer que venha, quer que chegue já. Quer mudar já! Quando chegará? Quer mudar já! Vai mudar já! Pff, enfrenta-se a ela própria sarcasticamente. Nem sabia para que é que tinha pedido uma consulta de tarot; por não gostar da resposta, ia fazer o que quisesse? Então, porque é que não o tinha feito antes, sem pedir o destino nas cartas e decidir acordar as estrelas para lhe darem uma previsão que não iria aceitar? Teimosa. Sempre teimosa. E agora olhava para a folha em branco que poderia ser uma carta – de demissão, de despedida, de suicídio; eram tantas as possibilidades.

Tinha de esperar.

Ainda não podia mudar.

Esperar.

Esperar. Batia com os dedos na mesa e olhava para aquela folha branca que se ria dela, que a enfrentava, que a desafiava. Desafiar. Também ela queria desafiar o Universo. A paciência nunca tinha sido uma virtude sua. Não podia mudar já, tinha de ir mudando, diziam-lhe as cartas. Quer mudar o seu rumo. Desafiar o Universo. Ignorar as estrelas e os signos e atirar-se do penhasco da realidade como se se libertasse para uma nova fantasia. De braços abertos, olhos fechados e o sol e o vento a baterem-lhe no sorriso. Enquanto cai e cai e cai em direcção a um desconhecido que ela tanto procura. Será que vai aterrar em terra, em almofadas, em sonhos e possibilidades? Ou em rochas, em morte, em finais? Quer atirar-se do penhasco. Desafiar o Universo. Não lhe sai da cabeça: desafiar. Desafiar. Desafiar.

Ela a desafiar o mundo. Uma derrotada preparada para ganhar, mãos na cintura como se soubesse que ia ser fácil e que não iria derramar sangue, nem deixar parte dela nessa batalha, quem sabe morrer enquanto tenta vencer. Um risco ridículo e estúpido que não pode evitar. Com a caneta a bater na mesa como se fosse uma espada, olha para o papel como quem vai para guerra.

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Rosa Machado
Curiosa e fascinada pelo que não compreende, bicho dos livros e criadora compulsiva de hipóteses mirabolantes. O tempo não existe quando há conversas filosóficas sobre nada, gargalhadas dos amigos, abraços a animais, viagens pelo mundo e todo o tipo de arte.

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