A Continuidade dos Parques ou A Autoestrada do Sul?

O ponto de viragem na minha relação com Julio Cortázar (ou com as suas obras: nunca sei se nos revemos mais na obra ou no autor) aconteceu com Autoestrada do Sul, o primeiro conto do quase perfeito Todos os Fogos o Fogo, onde um engarrafamento a sul de Paris depressa se estende por quilómetros e semanas, formando-se um nicho social onde os ocupantes das viaturas, nomeadas pela marca e modelo, assumem os papéis que interpretam “cá fora”, no mundo real.

Talvez este seja um dos contos mais longos de Cortázar (julgo que O Perseguidor é ainda mais longo) e constitui a abertura ideal para um livro magnifico. Neste conto vivem alguns dos ingredientes habituais na narrativa do escritor argentino, como o trabalho de composição de uma situação, a construção de uma história “com várias frentes” em que é preciso manter as pontas agarradas para no final tudo fazer sentido, e o caminho naquele limiar que nos habita a todos, entre o vómito real do quotidiano e o espanto próximo do absurdo.

Todos os Fogos o Fogo, publicado em 1966, foi o terceiro livro de contos de Cortázar que li e o quarto do autor. Foi a partir daqui que se tornou (que eu o tornei?) num dos meus escritores favoritos.

Um ano ou dois depois (leio os seus livros à razão de um por ano, para não cansar, e acenar-me com momentos de prazer no horizonte), deleitei-me com Continuidade dos Parques, o conto de abertura de Final do Jogo, escrito dez anos antes. E que conto, talvez a antítese d’A Autoestrada, e contudo, ambos são demasiado reconhecíveis como Cortazarianos, tal qual os estados de alma de um mesmo ser humano.

A página e meia bastou para Cortázar me agarrar à história que um homem lê, depois de chegar a casa e se recostar tranquilamente no sofá do seu escritório. O ritmo vertiginoso para tudo encaixar naquela pequena parcela de texto, tal como a capacidade sempre reinventada com que o autor é capaz de surpreender (mais não posso dizer) constituem dois dos traços mais característicos da escrita de Cortázar.

Talvez Cortázar tenha sido, a par de Borges, o grande responsável pela minha entrada (e quiçá preferência) no conto. A selecção destes dois exemplares não terá sido ao acaso, contendo toda a magia desta escrita tão corajosa, na forma, no conteúdo e até na estrutura, mostrando-nos a nós, leitores, uma curiosa coabitação de prazer e frustração, prazer na leitura; frustração por descermos à terra para admitir que escrever pode ser toda uma coisa, bem diferente daquilo que fazemos quando nos sentamos ao computador a verter ideias, inspirações, transpirações, emoções, memórias, histórias, vitórias, derrotas, receios, desabafos ou terrores.

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