Teletrabalho – Éramos Felizes e Não Sabíamos

Questionei-me se valeria a pena escrever sobre um tema cuja abordagem é para mim demasiado óbvia, mas, se para mais não servir, fica o desabafo.

Em teletrabalho há mais de um ano, com três ilhas quinzenais de trabalho presencial (duas delas nem chegaram a metade do tempo, devido a uma qualquer razão covidiana), mostrei-me muito relutante com a ideia de trabalhar a partir de casa.

Sem qualquer experiência de trabalho à distância, as minhas opiniões – hipotéticas – alicerçavam-se no tédio que senti nos breves períodos em que estive em casa desempregado (há quase catorze anos). E extrapolei: não vemos nem convivemos com ninguém; o espaço de lazer fica “contaminado”; as rotinas de início e de final de dia são importantes para marcar as fronteiras entre a vida profissional e a vida pessoal, etc…

Acontece que em Março de 2020, o teletrabalho, o confinamento e a novidade confundiram-se numa mescla que me levou a aceitar a nova vida com especial agrado, apesar do ritmo alucinante das primeiras semanas de teletrabalho (era a adaptação!). Isso e o facto de não ter perdido o emprego nem o vencimento. Cruzada a fronteira para o novo mundo, a temporada Primavera-Verão trouxe finalmente a consciência do verdadeiro ganho que esta nova modalidade deveria aportar às nossas vidas: uma gestão do tempo alocada muito mais ao lado de quem trabalha:

  • Quando antes acordava às seis da manhã, passei a despertar pelas sete e um quarto;
  • Os períodos de almoço constituíram-se como pequenas escapadelas para o paraíso, primeiro com momentos de leitura na sala silenciosa de casa, e mais tarde, com a abertura, nas mais saborosas idas ao café do bairro, de livro debaixo do braço, para o café e a sobremesa literária que foram preenchendo o novo hábito;

Sem deixar de gostar desta modalidade de vida e, apesar de trabalhar na sala, nunca tendo confundido os espaços (além da gestão do tempo, outra descoberta agradável foi o facto de conseguir separar, sem qualquer confusão, os espaços de trabalho e de lazer: fisicamente um só, temporalmente mais isolados do que um casal no primeiro dia após a ruptura), fui começando a sentir falta das pausas para o almoço com os colegas e dos momentos de viagem até Lisboa. Já antes, no escritório, dividia os almoços entre as conversas em companhia e as que trocava com os livros quando fugia sozinho para um almoço solitário, de modo a guardar meia hora para ler. Foi desse equilíbrio que comecei a ter saudades. Tal como dos momentos em que seguia de madrugada ou ao final da tarde ao longo da marginal a ouvir podcasts, pôr as conversas em dia ou a pensar na vida.

Do outro lado, abraçava-me o regozijo com que fechava o portátil ao fim da tarde para me invadir a alegria (difícil de acreditar durante os primeiros meses) de já estar em casa!, o conforto de poder dormir uma hora e tal a mais! ou o privilégio de poder almoçar com o meu pai, com as minhas irmãs (ainda que com alguma brevidade) ou passar mais tempo com a minha namorada!

Assim, o meu mundo ideal configurava um sistema misto, com uns dias a trabalhar em casa e outros no escritório.

O Verão acabou e com ele foram-se esbatendo os tempos: o de almoço e o de fim de turno. No início da minha carreira, orgulhava-me de “dar o litro” e deixar no escritório mais horas de vida do que aquelas pelas quais me pagavam. Quando olho para quem eu era nessa altura penso: Que estúpido! Um horário de trabalho cumpre várias funções, a mais importante das quais, não violar a vida para lá do trabalho. As palavras deturpam a lógica das coisas: não deveria haver uma vida para lá do trabalho; existe vida e o trabalho é uma parte dela. Assumir que a vida é algo que está para além do trabalho é colocá-lo no centro e tudo o resto a orbitar à sua volta. Por vezes pomo-nos a jeito.

No tempo em que ia diariamente para Lisboa gastava três a quatro depósitos de gasolina por mês, mas saía quase sempre entre as seis e um quarto e as seis e meia. Havia dia para gozar! Hoje, há meses em que não atesto o carro, mas um dia em que consiga sair antes das seis e meia é motivo de celebração.

Ouvir o telefone ou o Teams tocar pela hora de almoço ou depois das sete da tarde ou ligar o computador de manhã para constatar que os mails foram enviados em horário pornográfico, foi convergindo para um hábito e os hábitos, por definição, quanto mais raízes ganham, mais difíceis são de arrancar.

Por opção, deixei de sincronizar os mails no telemóvel profissional e nunca instalei nele o Teams. Um telemóvel não significa isenção de horário e mesmo essa, não é bar aberto onde nos servem prazos apertados e trabalho na proporção inversa.

Admito que a realidade do teletrabalho não seja igual para todos e que exista muita gente que se encoste. Sorte a desses! Eu sinto-me esgotado de ecrãs, calls e tecnologias, tendo perdido a vontade e a paciência para longas conversas ao telefone que antes gostava de alimentar, com a saturação que esta nova forma de trabalhar trouxe. Assumo ser este um tempo conjuntural, em que confundo este lado negro do teletrabalho com a impossibilidade de (à conta do confinamento) escaparmos para uma conversa numa esplanada entre amigos, restando-nos mais telefones ou almoços por Teams (!) para nos vermos. Mas ainda que me esforce por separar as coisas e diluir a confusão, o que mudará efectivamente quando pudermos voltar à normalidade do nosso lazer?

O respeito que os nórdicos têm pelo cumprimento dos tempos de trabalho também é (não só, mas também) o que lhes oferece qualidade de vida. Por cá, se não for a pressão social e o medo que as empresas têm de serem vistas como fugitivas à Responsabilidade Social, o abuso continuaria. Pior: cumprir um horário de trabalho nada deveria ter a ver com responsabilidade social mas simplesmente com respeito e com a honestidade presente no cumprimento de um contrato.

A justificação para o seu cumprimento deveria esgotar-se à partida: invocar razões de outra índole como os filhos, um qualquer workshop, hobby, etc… nada têm a ver com o reforço de uma saída a horas. No limite, eu querer terminar um dia de trabalho a horas para me deitar no sofá sem fazer nada é tão válido como ir buscar um filho à escola, frequentar uma aula de ponto-cruz ou mamar jolas com os amigos. Por isso é que se chama vida pessoal: porque não é profissional.

Regulação: precisa-se.

Em termos financeiros, confesso que não sei, entre o deve e o haver, para que lado penderá o saldo final de uma eventual regulamentação do teletrabalho. Admito que o subsidio de alimentação, pela justificação que esteve na base da sua instauração, possa ser questionado uma vez que deixamos de ter acréscimo de despesa por nos vermos obrigados a comer fora de casa, mas outras despesas entraram no quotidiano (não vou dizer quanto paguei a mais de aquecimento este Inverno), algumas pouco quantificáveis financeiramente, como três meses de dores nas costas e exames médicos para perceber que a causa estava na cadeira da sala não ter sido desenhada para nela passar nove ou dez horas por dia durante meses.

Não sei se a solução passará por multas às empresas de cada vez que um trabalhador tem o computador ligado fora do horário de trabalho (o período em que o Teams ou a VPN estão ligados podiam ser indicadores, mas de informática percebo pouco: havendo até quem à meia-noite programe os mails para serem enviados apenas às oito da manhã do dia seguinte (!), medidas mais eficazes seriam necessárias). Nem sei mesmo se as multas não seriam contraproducentes ao fragilizar as empresas. Acredito mais que, tal como a preocupação com as alterações climáticas tem sido empurrada por uma verdadeira pressão social (muitas vezes populista e hipócrita, é certo, mas é ainda mais certo que a questão de fundo é só uma: não podemos continuar a poluir como o fazemos), também a preocupação com a saúde mental dos trabalhadores deverá vir de fora, antes que seja tarde. A quantidade de estímulos tecnológicos que o teletrabalho trouxe para a minha vida foi brutal. Nunca tendo sido grande amante de jogos de computador nem um geek das tecnologias, a minha vida sempre foi mais preenchida com cinema, livros e amigos.

Não sei se esse distanciamento marca uma clivagem maior em mim do que naqueles que estão habituados a notificações por tudo e por nada, mas independentemente do modo como encaramos a vida, numa coisa acredito com uma força cada vez maior: A Vida não foi feita para trabalhar: a Vida foi feita para criar. A frase não é minha mas de Agostinho da Silva. Acreditar que podemos criar alguma coisa válida quando o tempo para desenvolver o processo criativo é completamente estropiado mostra, no mínimo, uma gritante ignorância. Falar de criatividade não é falar apenas de criação artística: para a grande maioria dos trabalhos a criatividade é necessária por tantas razões que me fico por algumas como a satisfação do trabalhador, a eficiência no desempenho das funções, a busca pró-activa de soluções alternativas, a entreajuda e o espirito de equipa, a adequada programação do tempo, etc… mandar tudo isto para o lixo ou, pior, alegar que se estimula o desenvolvimento de “competências” como “Inteligência Emocional”, “networking”, “soft skills” ou “work-life balance” e mais não fazer mais do que entupir o trabalhador com trabalho para ontem, independentemente dos tempos que cabem a cada um, é desdizer tudo aquilo que se apregoa com o Voluntariado Empresarial ou com a Responsabilidade Corporativa e Social, mas sobretudo, e para além destes chavões (que são bem mais do que isso), é cometer uma ilegalidade, e para tratar essas situações, existe a lei.

PS: Depois de terminado o texto, vi que uma das propostas de regulamentação do teletrabalho passa pelo cumprimento de objectivos (!). Eu que pensava que eram os mesmos do trabalho presencial… com tamanha cretinice por parte de quem se borra de medo de ser justo, começo a duvidar da eficácia da regulamentação.

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