Índia, ensinas-me a dançar?

Espaço. Dos ultrapassados oito biliões que há no Mundo, quase um bilião e meio está ali. Este número implica um certo grau de abstracção, assim lido, mas, in loco, com a conversão instantânea do número em gente, não há como abstrair porque, já se sabe, gente é coisa que ocupa espaço, é coisa que se vê, é coisa que se sente. Decorre, pelo princípio de adaptação da espécie, que as lotações se moldam à realidade: quando entramos num elevador e há um limite espacial que salta à evidência (esqueçam as regras, visualizem áreas), eles dão uma gargalhada amistosa na nossa cara, literalmente. Os corpos encolhem-se, empurram-se, quase se transmutam, numa maleabilidade de plasticina, para caber. Não há porque esperar pelo próximo, será igual. É assim nos elevadores, quando os há, tuk tuks, rickshaws, carruagens de metro, filas, e tantas filas, corredores, autocarros, passeios, quartos, compartimentos em geral, nenhum em particular. Cabem sempre mais do que podemos, nós, imaginar. Não é predicado exclusivo da Índia, há certos atributos sociodemográficos que parecem contribuir para esta acoplagem na forma de estar. O espaço vital pode depender mais do país onde se nasce do que da capacidade de o conquistar.

Corpos. Viajar de comboio é uma experiência de superação. Indianos entram nas carruagens em família, em grupos de amigos, ou grupos de desconhecidos, com malas que parecem carregar uma definitiva mudança, aos encontrões, empurrando, tentando alcançar lugar para si e para a(s) a sua(s) mala(s), ao mesmo tempo, numa fricção tal que se adivinha culminar num impossível. Sacos de plástico trazem farnéis com cheiro intenso a fritos, homens passam naqueles corredores estreitos vendendo água e chai, aprendemos como se monta um bairro num comboio.   Descem camas, sobem pessoas, dormem três no lugar de um, as casas de banho aguentam, em que estado, tudo o que a viagem não pode aguentar. Ao fim do segundo bilhete percebemos que basta esperar. Tudo se encaixa, os metros quadrados alargam, as malas encolhem, as merendas vão desaparecendo, dispõem-se os lençóis nos beliches de dobradiça e tudo, impressionantemente, cabe.  Sabe-se lá que leis da física operam.

Barulho. Nas grandes cidades da Índia, o trânsito segue a mesma máxima: cabe sempre mais um. Se há espaço, há que o preencher, formando o Tetris em que as peças encaixam conforme forma e dimensão, ou ousadia. Camiões enfeitados como bonecas, com grinaldas coloridas, carrinhas, carroças, táxis, táxis, táxis, tuk tuks, rickshaws, bicicletas, peões, motas, motas, motas, vacas, carros de mão puxados por gente e gente puxada por carros de carga. Com excepção dos peões e das vacas, todos BUZINAM. Buzinam constantemente, muito, em qualquer circunstância: a buzina serve para assinalar presença. A buzina ouve-se quando há manobras temerárias, quando há falta de manobras, quando há pressa, quando há engarrafamentos (e se os há), quando o trânsito milagrosamente flui, quando passa gente, carros, vacas, motas, quando nada passa. É o som omnipresente das ruas e, por força da banalidade, já ninguém liga. A soberana poluição sonora tornada música ambiente. Mergulhamos, aturdidos.

Cheiros. Dos óleos sempre essenciais à intensidade dos aromas quentes das comidas preparadas na rua, temperadas pelos gases cuspidos dos tubos de escape dos carros, das motas, das vacas que, acto contínuo, contribuem para os índices de poluição do país, dos dejectos, dos urinóis públicos que podem apresentar-se onde menos esperamos, do lixo que se deposita em qualquer lado, não obedecendo a nenhuma regra aparente (senão à razão de haver espaço) e, interrompamos a náusea, um incenso que sai em bruma de uma loja, de uma banca de especiarias ou de um rickshaw que cruza o nosso caminho. Não são apenas as buzinas que assinalam existência («buzino, logo existo» diria Descartes, se fosse indiano), os incensos também o fazem, deixando uma marca salvífica, em nós. Em Dehli, o ar é denso, não permite ver longe, quase se consegue agarrar e cola-se a nós, deixando na pele e na roupa uma camada fina e pegajosa, que no fim do dia é uma mescla indecifrável de todos os cheiros experimentados. Não se cheira a Índia incólume.

Opostos. É surpreendente como se revezam, ora dando lugar a uma riqueza opulenta, cintilante, ora a uma pobreza baça; ao silêncio dentro dos templos e ao barulho ensurdecedor das ruas; aos arranha-céus das zonas comerciais modernas e aos bairros de barracas que se estendem sem ordem por onde houver espaço; a ideia de limpeza impressa nos locais sagrados e a porcaria que inunda as ruas. Desvela-se uma cultura ancestral, elevada, com as primeiras sementes deitadas no Vale do Indo e assiste-se à ignorância preconceituosa; o mito e a realidade; o sagrado e o profano; o santo e o ladrão, às vezes no mesmo corpo. A promessa de deleites gastronómicos que precedem o desarranjo; a crueldade da estrutura social e a veneração do Criador dessa ordem; a docilidade dos rostos e a voracidade dos esquemas; a sujidade mórbida, patológica, e as cores límpidas e vivas (denota a mulher, mas não a cor do sari que enverga); a sacralizada dos rios e os incontáveis restos e dejectos ali depositados. Adoram o rio, divinamente, e atiram-lhe lixo a todo o instante. Tudo cabe, Mãe Índia.

Tanto. Tantas línguas, tantas religiões, tantos deuses, tantos demónios. Tantas etnias, tantas histórias, tantas estórias, tantas cores, tantos cheiros, tantas maravilhas, tantas desgraças. Dançam os opostos, como os corpos e as malas nos comboios, numa coreografia feita de investidas e recuos, trazendo à evidência que o equilíbrio não pode estar ali, numa ironia invisível que espreita a cada momento, zombando de nós, ingénuos. O mundo materializa-se em desequilíbrio, a Índia sabe.

Contra todas as evidências evidentes, aceitamos o jogo. Às vezes parece o fim do mundo. A Índia sabe que não. A dança continua.

artigo escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico

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