O livro era traiçoeiramente pequeno, um pequeno-exemplar quase de bolso que a Sofia me comprou depois de eu o ver na Livraria da Travessa e lhe ter falado de Robert Walser e de Jakob Von Gunten, o único livro que havia lido do iconoclasta autor suíço.
Em Caminhadas com Robert Walser, Carl Seelig não nos traz grandes impressões filosófico-psicológicas, mas o dia a dia: relata os passeios dados com o escritor ao longo de vinte anos, apanhando-o no sanatório onde Walser passou as últimas décadas da sua vida. Nas descrições de Seelig, encontramos não apenas imagens bucólicas dos passeios pela montanha, as estalagens e as aldeias que cruzavam, ou o que comiam, mas também a personalidade taciturna de Walser, as bruscas variações de humor, a rivalidade com Hesse, a Literatura e a Vida.
Li grande parte do livro de Seelig no desconforto de um voo transatlântico em 2023, e nessa leitura viajei até à Suíça da década de trinta, para “ouvir” as preocupações de Walser acerca da ascensão do Nazismo. O livro começa em 1936, mostrando-nos um Walser já pós-colapso nervoso (sendo posteriormente diagnosticado com esquizofrenia catatónica) que o atirou para o hospício de Herisau.
Jakob von Gunten é um livro poderoso, mas não tão interessante quanto a vida do seu autor, mais um dos fiéis e corajosos intérpretes desse pessimismo centro-europeu, como Hesse, Zweig ou Bernhard, vidas equilibradas no limite da sanidade, mas cuja Arte foi ainda a tempo de os resgatar, espremendo com mestria a descodificação tão profunda dos demónios interiores que (quase) todos albergamos. Comprei-o enquanto exemplar único, já um pouco danificado, para perfazer o que restava de um cheque-oferta que o meu pai me havia oferecido no aniversário (treze euros e alguns cêntimos, um valor não exacto, comprovando o carácter secundário da obra no espólio da cadeia livreira), e acabou por ser o exemplar maior dos quatro ou cinco que trouxe para casa.
A história de um rapaz que vai para um internato com vista a formar-se enquanto mordomo era tudo menos apelativa, mas a leitura acabou por me apresentar a esse nome singular das letras europeias. Agora, ao escrever estas linhas, sinto estar na altura de regressar a Walser, ao universo de quem virou as costas ao mundo e assumiu essa escolha, não sem sentir a convulsão perante o peso de tamanha decisão.
É muito interessante, fascinante mesmo, caminhar junto a estes dois personagens (Walser e Seeling), percorrer com eles as montanhas da sua intimidade, uma intimidade que é só deles, e por isso aparentemente tão irrelevante para o resto da humanidade, mas que ganha um brilho enorme por ser uma das raras portas abertas para a vida de Walser.
Como defendia Joe Gould, a História também se faz (ou faz-se sobretudo) dos pequenos acontecimentos do quotidiano e não só das grandes batalhas, mudanças sociais ou tecnológicas. Caminhadas com Robert Walser mostra-nos isso: a beleza das pequenas coisas, mas que, para quem as vive, podem ser grandes ao ponto de se transformarem em quase tudo o que possuem. Estas caminhadas tratam de uma belíssima amizade.
Caminhadas com Robert Walser também é isso mesmo: um manifesto à Amizade e ao Respeito, não uma elegia ou um desfiar de palavras fofas, mas um relato fiel, em momentos cru, noutros pungente, mas sempre honesto e respeitoso, de um amigo para outro. Um testemunho maravilhoso sobre o espírito de um escritor enigmático.
[Este texto não está escrito segundo o novo acordo ortográfico]