Quando chegaram à árvore, o céu já começava a ganhar cor. Os pássaros que se atreviam a voar àquela hora levavam essa cor de um lado para o outro – eram pássaros rosa e laranja e amarelos e azuis.
A árvore era tremenda. Imponente. Um universo.
Saltaram para a água e puxaram o barco para cima da pequena ilha coberta de raízes gigantes. Os braços quase sem força e tudo neles pesado. Sentaram-se e viram o Sol nascer. Depois, deitaram-se e adormeceram.
Eram raios leves que passavam entre a copa gigante e lhes tocavam nas pálpebras. Ele acordou primeiro e viu a pequena ainda a dormir, boca aberta e torta, cara suja, sobrolho franzido mesmo durante os sonhos. Ainda deitado, deixou-se abismar por ter chegado àquele lugar de onde ninguém saíra – na verdade, ele não sabia se alguém sequer chegara. As folhas verdes, mesmo em pleno Outono, reconfortavam-no, validavam aquela árvore-bruxa, árvore-impossível, árvore-enganadora.
Ouviu um ruído. Pareceu-lhe que as raízes se mexiam. Levantou-se com dificuldade e deu a volta à árvore. Não percebia de onde vinha, quem o fazia. Era um grunhido leve e vivo. Regressou para ao pé do barco e da menina, que já estava acordada.
“Tenho de procurar o meu irmão” disse, ainda esfregando os olhos. “Onde estará? Dentro da árvore? Ou nas folhas?”
Ele olhou para cima automaticamente, como se fosse possível encontrar alguém pendurado nos galhos, a balouçar, vigiando e brincando. Não soube o que dizer. Ele achava que estava em território inimigo, a árvore da morte, à espera de ver a qualquer momento o esqueleto do seu pai; aquela menina achava que estava na árvore de Deus, para onde vinham os mortos, à espera de ver a qualquer momento a alma do irmão.
Quando baixou a vista, viu-a ao pé do tronco, a acariciá-lo. Sorriu-lhe. Um sorriso que era também um susto. Ele aproximou-se e deixou-se espantar.
A árvore pulsava.
Uma árvore-coração que latia.
O ruído que ele ouvira não era um grunhido. Era vida.
Encostou o ouvido ao tronco, sentiu que se movia como um peito, e chorou. De olhos fechados e abraçado à madeira quente, colado à resina. Sentiu uma mão pequenina no fundo das costas. Não quis fazer caso, mas sentiu-se a chorar ainda mais. Uma mão pequenina empapada de compaixão, que se movia e o consolava devagar. Como se lhe curasse o coração partido e os ossos velhos e o vazio da ausência que tinha carregado toda a vida. Chorou até soluçar.
Uma árvore-coração, quem diria.
Largou-a devagar, desfazendo-se do abraço. Com a vista nublada pelas lágrimas viu que a menina voltara para ao pé do tronco. Fazia-lhe festas e dava-lhe beijos, encostava-se como quem é consolado, e pegava o ouvido de vez em quando, anuindo, como se falassem.
“É o coração do meu irmão” explicou-lhe.
Não, não é, pensou dizer-lhe ele. Mas não disse. Ele era um velho infeliz, gasto e pronto para morrer, mas talvez tivesse aprendido algo novo naquele lugar, talvez tivesse sentido algo novo.
Ele sabia que aquele era o coração do irmão da menina. Que era o coração do pai dele. E era o seu coração e o da menina e o daquela família que tinha perdido um filho bebé, e que também era o da mãe dele, defunta de solidão há tantos anos, e que era o coração daquela árvore e daquele rio interminável e daquela aldeia e do mundo. Aquela árvore era o coração do mundo.
A menina abraçou a árvore e sorriu. Ele fez o mesmo.
“Pois é” respondeu-lhe entre lágrimas. “Pois é.”