O adolescente

D. Afonso Henriques zangou-se com D. Tareja, sua mãe. Ela não o deixava sair até tarde, porque, apesar de ser um adolescente, tinha responsabilidades acrescidas. Um dia, ele seria o responsável pelo reino e teria de dar o exemplo. A mãe tinha noção do desagrado da situação, mas não podia permitir que ele não obedecesse às suas ordens. Para todos os efeitos, ela era a Regente do Condado.

O rapazinho é que não aceitava aquela decisão, de bom grado. Ele ia ser o rei, por isso, podia fazer tudo aquilo que lhe desse na real gana. Aqui real é a palavra mais adequada pois, um dia, seria o rei, sonho de seu pai que seria concretizado.

Contudo ele queria era sair naquela altura porque, mais tarde, certamente teria outros assuntos mais importantes para tratar. Para mostrar o seu descontentamento gritava com Tareja, insultava-a e ameaçava que não voltaria a combater nem iria cumprir todos os outros compromissos que tinham sido assumidos. E expressava-se num tom demasiado elevado para o gosto de sua mãe.

Ninguém tinha afirmado que ser mãe era fácil e esta mãe era muito inovadora para a época porque acumulava a função maternal com a governação condal. Às vezes tinha vontade de desistir de tudo, mas, na sua posição, tal tornava-se inviável. A tarefa era árdua, mas seria recompensada com a educação do seu filhinho.

Nessa noite, D. Afonso, quando sua mãe já dormia após um serão pacato no Paço, escapuliu-se e foi divertir-se como um qualquer adolescente da sua idade. Como ninguém o conhecia na vila, aproveitou ao máximo, para ser mais um anónimo que se deliciava a fazer disparates. Dava pontapés nos caixotes, abria as torneiras e gritava aos sapos (claro que isto é uma história porque no século XII ainda não existiam nem torneiras nem caixotes, mas só sapos e muitos sapos).

Decidiu beber umas cornas de cerveja e, como lhe estavam a saber muito bem, exagerou até ficar meio tonto. Quando o estalajadeiro lhe pediu o dinheiro, como ele não fazia a menor ideia do que ele estava a falar, simplesmente disse-lhe: “Eu sou o futuro rei deste reino!”

– Ó Martim! Ajuda-me a pôr mais um maluco na rua! Este pensa que é o rei! É com cada doido que nos aparece! Não sabem mesmo beber!

Na manhã seguinte, D. Afonso. o jovem, estava caído no meio da rua, com uma tremenda ressaca. Entretanto passa a Brigada dos Costumes e pega nele. Levam-no para os calabouços. Coitado, nem teve hipótese de falar nem de se explicar.

– Rapazinho, vais ficar aqui até curares essa bebedeira. Onde está a tua mãe? Ela sabe o que andas a fazer?

– Eu sou o futuro rei de Portugal! – insistia ele, ainda com a cabeça a andar à roda e a boca a saber a papel de música.

– Pois, pois. E o Condado vai ter rei ainda esta semana.

– E eu sou a tua mãe, a Regente D. Tareja.

E riam a bandeiras despregadas, como se fosse, soltas, do pobre rapazinho que tinha apanhado o seu primeiro pifo, ou a sua primeira bebedeira. Todas aquelas vozes lhe soavam a trovão, como se um tambor gigantesco estivesse na sua cabeça, a ribombar continuamente. Bum! Bum! Bum!

Entretanto no Paço, D. Tareja está preocupadíssima pois o Infante não aparece para tomar o pequeno-almoço. Já o procurou por todos os recantos, todos os esconderijos que conhece, interrogou todos os criados, mas ninguém o viu. Num último reduto de aflição chama o seu fiel aio, D. Fuas Roupinho e pede-lhe, com duas lágrimas teimosas a querem saltar e rolar pelas suas faces, que verifique, no perímetro mais próximo, onde o seu filhinho possa estar.

Já se condenava, remoía-se pelo facto de não o ter deixado sair, culpava-se por tudo aquilo que lhe pudesse ter acontecido. Aquele era o seu único filho e, uma viúva sozinha, é uma mulher fragilizada e desprotegida. Prometia a si mesmo que seria mais benevolente, mais tolerante com ele e que o acompanharia em tudo aquilo que ele pedisse.

– Minha Senhora, não há sinal de D. Afonso. Já percorremos toda a zona e ninguém o viu nem sabe de ninguém que o tenha visto. Posso alargar o perímetro de busca?

– Fassaide isso, meu nobre aio. Confio plenamente em si.

[O acordo ortográfico ainda não existia e as liberdades literárias podem e devem ser incentivadas e permitidas]

Nos calabouços, D. Afonso começa a recuperar a lucidez e torna-se exigente com o serviço. Quer comer e não lhe serve qualquer prato. Quer faisão cozido com molho de alecrim, marinado em natas de vaca malhada. Todos os labregos riem desalmadamente à excepção de um, alto e moreno que, aparentemente, reconhece o seu senhor.

– Este rapaz está a dizer a verdade. Eu já trabalhei no Paço Condal e este menino é D. Afonso Henriques, filho de D. Tareja e do falecido conde D. Henrique.

Silêncio total. Seria possível que o rapaz tivesse dito a verdade? É enviado um mensageiro que se cruzou com D. Fuas Roupinho. Felicidade! O menino está encontrado são e salvo. D. Tareja fica doida de alegria, mas, mesmo assim, não se coibiu de o castigar. Ficou sem jantar durante duas semanas e nunca mais comeu mousse de chocolate feita com natas de vaca malhada, só da outra.

Como recompensa, o labrego que reconheceu o menino, um homem chamado Egas, ficou a trabalhar no Paço e encarregue da educação do seu futuro rei. A partir daquele momento, não o largou e foi sempre a sua sombra. Dizem que até houve por ali demasiado mimo. A iniciação à vida adulta estava feira.

Claro que depois ainda tiveram oportunidade de beber mais umas cornas de cerveja e de outras bebidas que proporcionavam momentos hilariantes e despreocupados. Felizmente que nessas calendas não havia confinamento nem outras limitações tolas e, mesmo que os tempos fossem de andar à bulha uns com os outros, no fim iam todos para os copos!

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