Minha senhora, tem o cosmos preso nessa malha

Perguntava-se se o universo não seria apenas uma malha feita em crochê, como aquela que ia lentamente nascendo nas suas mãos. A ideia pareceu-lhe um poema. Setenta e oito anos, duas agulhas e dois novelos eram o suficiente para que se sentisse capaz de aprisionar o cosmos num labirinto de lã. De resto, pouca coisa sabia sobre os planetas, as galáxias ou o pó das estrelas.

De vez em quando, espreitava o mundo pela janela. Tudo se inundava de luz e de primavera e de pássaros cantantes. As flores começavam a despontar nas árvores do quintal. A vibrância das suas cores ajudavam-na a esquecer a nudez triste e pálida de um inverno que durou demasiado. Ainda assim, continuava a sentir a pele dorida, como no dia do enterro.

Era difícil não reviver essa tarde gelada. Ainda trazia no olhar um rasto da terra que tinha entornado sobre o caixão. Já se ia sentindo menos quebradiça, mas havia dias em que dava por si a chorar de forma infantil, com medo do escuro e da solidão (não é a mesma coisa?). Passou a vestir preto e deixou de cantar no duche. Em pouco tempo, o seu rosto tornou-se mais enrugado, como se as lágrimas lhe tivessem aberto sulcos na pele.

Costumava sentar-se no cadeirão que era dele. Não suportava vê-lo vazio. E as horas sucediam-se no relógio da parede, demasiado lentas, demasiado macias, demasiado iguais. Passava pelos dias assim, embrenhada nos nós de lã e nos poemas espontâneos que lhe iam aparecendo na mente. Mas estava melhor desde que o sol tinha voltado. Por vezes, já se conseguia rir das suas pequenas avarias e nas manhãs mais espirituosas chegava a dar um pé de dança com a vassoura, ainda que silenciosa e discretamente.

Sentia-se apaziguada pela luz clara e persistente que se espreguiçava para dentro de casa. A jovialidade primaveril colava-se às janelas e era bonita. Ao final da tarde, com um sorriso tímido desenhado na face, pousou os novelos e as agulhas. Daquele labirinto de fios coloridos tinha nascido, singelo e ternurento, um casaquinho de bebé. Faltavam poucas semanas para ser bisavó pela primeira vez e mal podia esperar para testemunhar essa magia da vida que a primavera sempre traz. Nesse momento, teve a certeza: o universo cabia todo naquela malha de lã.

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