Christine protagonizado pela brilhante Rebecca Hall é um retrato íntimo sobre a primeira figura televisiva a se suicidar em direto num programa norte-americano.
Realizado pelo norte-americano Antonio Campos (descendente de italianos e de brasileiros) que apenas dirigiu Simon Killer em 2012 e Depois das Aulas em 2008, Christine é um retrato fascinante e ao mesmo tempo perturbador da degradação de Christine Chubbuck (1944-1974), uma jornalista pouco conhecida que protagonizou um acontecimento invulgar nos EUA, ao se suicidar numa emissão em direto do segmento ‘Suncoast Digest’ no Canal 40 da cadeia WXLT (atualmente, WWSB/Canal 7), em Sarasota, na Flórida. O filme gira em torno da protagonista, sem nunca a deixar fora de cena, e que vive muito da interpretação consistente de Rebecca Hall. Um filme único apresentado e descoberto no Lisbon & Estoril Film Festival, que está prestes a terminar.
Christine é uma mulher que vamos conhecendo aos poucos. Primeiro a câmara mostra o seu quotidiano no trabalho e a sua dedicação a uma rubrica, onde supostamente se deve mostrar o lado positivo das banalidades rotineiras dos cidadãos locais, como por exemplo, apresentar os melhores legumes e frutas da temporada, mostrar casais muitíssimo apaixonados ou até desvendar o segredo por detrás da procriação das galinhas. Christine é também voluntária na secção pediátrica de um hospital e vive com a sua tão pacífica mãe. Todavia, Christine não é feliz, sentindo que lhe falta mais qualquer coisa. Para além de estar prestes a comemorar os famosos e, para ela temíveis, 30 anos de idade, Christine vive obcecada com o seu trabalho e com a exigência de contar histórias com um aprofundamento mais negro, como o seu próprio chefe Michael (Tracy Letts) insiste: “if it bleeds, it leads”. Mesmo assim, Christine falha constantemente, isto porque o seu programa portador de felicidade, está demasiado enraizado na mente dos telespetadores.
Além disso, Christine não se consegue relacionar socialmente, para além de nunca ter tido um relacionamento ou de se ter casado, algo com que sempre sonhara. O sonho de Christine é igualmente abalado quando descobre ter um tumor no útero, segredo que nunca chega a partilhar. Christine é portanto uma personagem que percorre um caminho nefasto, situação similar ao de outras tantas personagens já despontadas pela sétima arte, e que eram tendencialmente consumidas pela ansiedade e pelas pressões laborais – relembramos a título de exemplo, Cisne Negro, realizado por Darren Aronofsky e com Natalie Portman no papel de uma bailarina.
A personagem Christine oferece tantas ressonâncias nos dias de hoje, no qual ainda se discutem questões feministas, que provavelmente muitas mulheres se identificarão, à sua própria maneira, com ela. Christine é essa mulher, que mais do qualquer atitude obsessiva de voyeur, sente-se resignada durante muito tempo, até que é suficientemente capaz de apertar o gatilho e de chocar tanto os seus colegas, como uma nação inteira. Sem subterfúgios, repare-se que este filme pertence manifestamente a Rebecca Hall, a atriz de 34 anos que participou como secundária, em Vicky Cristina Barcelona, de Woody Allen e em A Cidade, de Ben Affleck, e que consegue interpretar aquela figura alienada e isolada do mundo com um certo magnetismo, onde por vezes esquecemos o final chocante que nos aguarda. Os seus colegas até podem confirmar que ela não é a pessoa mais acessível, mas o espetador sente exatamente o contrário.
Na realidade, pouco se sabe sobre qual foi a razão direta para o suicídio de Christine Chubbuck – a história revela subtilmente que a primeira tentativa ocorreu Boston (por overdose de medicamentos)-mas notamos que o argumento de Craig Shilowich tenta justifica-lo, em vários momentos tensos que se acumulam e conduzem à ruína final. Em todos eles, Rebecca Hall transporta o caráter bipolar e mirabolante dessa figura, vítima da tão estudada sociedade do espetáculo.
Mas Christine não é só sobre Christine. O filme de Antonio Campos é também um rememorar das transformações técnicas dos canais televisivos. A substituição da película de 16mm pelo vídeo está bem evidenciada nos enquadramentos do filme, película essa que hoje em dia, parece convocar uma dimensão espectral da personagem, no rosto fantasmagórico, pálido e pouco maquilhado de Rebecca Hall. Senão vejamos o início do filme, em que Christine ensaia uma possível e imaginária futura entrevista com o presidente Richard Nixon, a contextualizar a pressão sentida sobre a protagonista numa era em que o caso Watergate estava nas bocas do mundo. Por sua vez, a direção de fotografia de Joe Anderson procura evidencia-lo, ao dar ênfase a tons amarelados, quer seja no local de trabalho de Christine, como na sua casa ou nos espaços públicos da solarenga Flórida, também presente nos seu diário-bloco de nota e até no seu carro, não num tom de explosiva alegria, mas para servir de contraponto ao seu colapso, que ninguém ao seu redor é capaz de prever ou de prevenir.
O elenco mantém-se fiel à trama, em que destacamos Michael C. Hall (o ator de Dexter) que interpreta o pivô do programa em que Christine se suicidou, e que numa das sequências, a convida a visitar um centro de ajuda mútua, justificando alguns dos caminhos tenebrosos percorridos pelas celebridades televisivas.
Entendemos igualmente que o propósito de Campos é mostrar todo o contexto por detrás do suicídio e que este ato nunca é isolado sobre a personagem principal. Christine é o alvo de si mesma, mas ainda é alvo de uma máquina social, na qual os seus colegas são peças fulcrais. Sentimos apenas que o filme no seu final teme em explorar as consequências da tragédia sobre Peg (J. Smith-Cameron), a mãe de Christine, talvez por algum respeito à família, preferindo insistir no distanciamento que a televisão provoca sobre os seus telespetadores.
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