A Sara tinha apenas 19 anos, quando morreu. Uma vida que ficou ceifada por não ter sido levada a sério. Os médicos não ouviram as suas queixas ou não souberam olhar para ela. Oriunda duma família humilde acabou por ficar sempre em segundo plano. Era ela que cuidava do irmão com necessidades especiais, era ela que enchia a casa de música e alegria, era ela que sonhava com um futuro repleto de sonhos. Era uma menina mulher que carregava em si um sofrimento enorme que crescia lentamente. A Sara foi 11 vezes ao hospital, mas nunca fez nenhum exame médico que pudesse despistar uma doença grave. O único exame que lhe fizeram foi um teste de gravidez pois apresentava dores de cabeça, mal-estar e vómitos. Tão parametrizado que até assusta.
Não se pode afirmar que ela exagerava os sintomas uma vez que era bem comedida nas suas atitudes e actos. Uma das várias vezes em que foi encaminhada para o hospital, uma das professoras acompanhou-a na sequência dum incidente na sala de aula. A Sara não se queixava. Foi sempre invisível e tratada como alguém que não devia estar onde estava. Um completo desprezo e uma enorma falta de ética. Sara era apenas uma rapariga que frequentava um curso profissional e uma, entre tantas meninas da sua idade, que sonhava ter uma vida mais fácil que aquela que enfrentava. Sara era uma lutadora.
A mãe sabia que ela já estava acordada, quando a ouvia cantar e a tratar do seu irmão. Uma espécie de estágio para o curso que gostaria de seguir. Um verbo no conjuntivo e não no condicional. Era determinada, mas não imortal. Uma manhã as melodias que costumava cantar não foram ouvidas. A Sara tinha morrido durante a noite. Tinha um tumor no cérebro, com mais de 1,5 quilos, que se desenvolveu aos poucos e que podia ter sido tratado. Não aconteceu. Os pais ficaram órfãos da filha e o irmão perdeu a sua cuidadora, aquela que tinha capacidade para múltiplas tarefas e nunca falhava. Os outros primeiro e ela depois. Uma perda irreparável.
Ser pobre não devia ser sinónimo de indiferença. A invisibilidade pode ser fatal, como neste caso. Sara era uma pessoa e não um número que ficou registado nas urgências do Hospital Padre Américo. Sara era uma flor que foi colhida antes do tempo e que murchava todos os dias. Sara não se curou, como significa o seu nome. Sara definhou e o tempo dela esgotou-se. Uma tragédia para a família que se sentiu perdida e deixou de acreditar nas instituições. Sara é a prova de que existem falhas e que devem ser colmatar para evitar situações idênticas. Sara não deve ser esquecida.
Foi aberto um inquérito para apurar as causas do seu falecimento. Os grandes têm sempre forma de dar a volta às ocorrências. São médicos, profissão de topo e bem renomada. Em terra em que ainda se torce o boné aos senhores doutores, os que fazem os milagres terrenos que os outros, os divinais não são para aqui chamados, os que estão na base raramente são tidos ou achados. Uma verdade que custa a engolir e que se perpetua no tempo. Em pleno século XXI os hábitos e as tradições medievais são ainda férteis e com seguidores. Muitos. Os pares sabem encobrir-se e defender. Nada de mau lhes poderia acontecer até porque Sara já tinha morrido.
Os resultados são agora conhecidos. Não houve dolo por parte dos médicos. Ficaram ilibados de qualquer comportamento menos honroso. O juramento de Hipócrates foi esquecido, mas isso não vem para o caso que só alguns sabem o que significa. Salvar vidas pode variar conforme o valor que cada uma tenha. Nem todas são iguais e umas são mais importantes que as outras. Seguem os tais profissionais a sua vida como se nada tivesse acontecido e está tudo dentro dos parâmetros regulares. A morte da Sara continua solteira e vai ser arquivada. Uma decisão dos tribunais, os que sabem como funciona a lei do país, mas não a da saudade e da justiça. Nada poderia devolver Sara, a filha, aos pais, mas o apuramento da verdade seria um alívio para a alma dos progenitores.
Mais uma vez se prova que quem tem o poder ganha sempre. A consciência ou a moral, conforme o nome que lhe queiram dar, não incomoda estas pessoas que encolheram os ombros perante as contínuas idas à urgência duma rapariga ainda tão jovem. Errar é humano e, quando esses mesmos erros são reconhecidos e admitidos, há um engrandecimento de quem o pratica. Todos falhamos por sermos incompletos e volúveis, mas não se pode permitir que se ignorem sintomas que obrigam alguém a recorrer a um hospital 11 vezes. É desumano e bizarro. Sara foi esquecida como um papel amarrotado e sujo que rola pelo chão. Não era lixo, era uma vida que se apagava aos poucos e uma chama que se extingiu.
Resta uma enorme saudade para os seus familiares e amigos. De que vale voltar a insistir num tema que já se percebeu que não tem modo de ser alterado? A vida é um bem precioso e não pode ser recuperada. As lágrimas que ainda se choram continuam a queimar o peito e deixam sulcos profundos no rosto. Os pais vão envelhecendo por dentro e por fora e a vida que antes conheciam não mais poderá ser repetida. Tantas Saras que existem e tantos senhores doutores que agiram em conformidade. Só que não. Há sempre mortes que se podiam evitar se olhassem para dentro de cada um em vez de não reparar.