No tempo em que nunca tinha tempo para ter tempo de conhecer quem era daquele tempo, ouvia falar de um certo café. Na verdade, saía tão cedo de casa que nem consegui vislumbrar o tal café.
Não era escondido e muito menos esconso, o templo dos desocupados ou dos que já tinham tempo, era um espaço arejado, mas tinha uma nuvem que o epitetava.
O Sousa, o que o explorava, era um homem de fraca figura, mas cheio de ironia e bom humor. Baixote, o que me levava a pensar que teria um banquinho para chegar ao balcão, carregava a capa da dor.
Segundo ouvi contar, quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto, tinha-lhe morrido o filho e essa dor excruciante, de dizer adeus a um descendente, não tem nome.
No entanto, a vida continuava e o Sousa, não faço ideia se havia uma mãe nesta equação, ia levantando a cabeça e até parecia mais alto. Só que o peso da ausência o voltava a curvar.
Eu continuava sem tempo para ter o benefício de assistir às tertúlias que se desenrolavam na casa de carpir. Estava ocupada a ter aquilo a que se dá o nome de responsabilidades.
O meu regresso a casa era tardio e cansativo. A curiosidade era grande e, para minha tristeza e desgosto, não cheguei a conhecer a catedral das “bejecas”, bicas com cheirinho e as cascas de tremoços pelo chão.
Contudo, conheci o Sousa, quando mudei de local de trabalho e comecei a ter qualidade de vida. O movimento pendular gastava-me o tempo que não podia ser recuperado.
Aquele ser mirrado, de cabeça coberta e com óculos de muito boa vontade, era o pai de um jovem que não deixava partir. Continuava vivo e o luto pairava em si. Largou o café, que a idade já era forte e com o travo de poder, para decidir viver a velhice sem barreiras. Pode-se tirar o vício de alguém, mas esse, o dito, nunca o abandona.
O Sousa, homem que teve um café, o café do morto, deambulava pelos cafés da zona, em busca de um pouco de atenção e carinho. Os clientes, no fundo, são familiares a quem se dá um desconto, por serem assíduos.
Foi assim que o conheci, encostado ao balcão de um café. Um homem muito bem posto, de calças com vinco, camisa engomada e postura de um verdadeiro senhor. Estava mirrado.
Um dia convenci-o a se sentar ao pé de mim. Queria desenrolar-lhe a língua, ajudar a soltar todos os fantasmas que moravam dentro de si e dar-lhe a leveza que tanto precisava.
O que sucedeu não estava no meu guião. O ser que se me apresentava, encolhido, tapado com roupa de qualidade, era um farrapo humano. E foi ali que tudo se quebrou.
As lágrimas grossas e pesadas, rolaram pela sua face, sem qualquer tipo de vergonha. Sem saber, que um homem não chora o caraças, libertei a rolha que o oprimia.
Sinceramente, não posso relatar as suas tristes e tão magoadas palavras, que se atropelavam a uma velocidade estrondosa, mas sei que lhe limpei a alma acumulada de uma dor poderosa e castradora.
Nenhum pai deve assistir a um desfecho como este e a vida, com o sol do costume e o calor a sério, tem sabor amargo e tom escuro. Sousa, o pai do morto, arrastava-se pelos caminhos.
Criámos, então, uma doce rotina. Ele esperava por mim, apesar de dizer que estar ali era uma coincidência, para despejar as dores de uma velhice não calculada.
Contava anedotas, confidências de clientes que nunca conheci, planos que não viram a luz do dia e, pelo meio, vinha sempre a saudade de um filho que não viu crescer.
Para os pais, os filhos são meninos toda a vida e aqui aplicava- se o mote, o menino, o seu. O Sousa, que teria nome próprio, era um pai em luto perpétuo.
Sair de casa fazia-lhe bem e, aos poucos, a tal nuvem escura que o tapava, ia esmorecendo. Até que um dia o Sousa foi chamado para a prestação das contas finais.
Recordo-me de ouvir comentar, ou talvez seja a emoção a falar, que o velório foi uma réplica do seu café, com vozes que o faziam vivo. Isto é pura amizade.
Há muito que deixou de haver o café. Já se apagou toda essa memória. Do Sousa não se fala e muitos dos clientes embarcaram de vez, sem possibilidade de regresso. Segundo se costuma dizer, é a vida. Aquele local, numa rua central, teve outras serventias e agora, como que uma espécie de golpe de magia, é ligado a gente tão jovem que desconhece o que possa ser este sentimento, a saudade.