Ontem o dia deu em chuvoso. Uma chuva miudinha que começou com uma certa timidez e não conseguiu avançar. O Outono é tempo de chuva, de castanhas e de recolhimento. Tempo de reflexão. Chuva que cai solta e ligeira como uma criança que ainda não sabe o que querer.
Nos transportes, quase vazios, o ambiente estava abafado. Poucos lugares ocupados e pessoas a cuidarem das suas vidas com ar de indiferença. Agora andam todos escondidos nas máscaras que é sinónimo de pouca vontade, mas os afazeres não se compadecem com essas mesquinhices.
No comboio uma rapariga sorria para o telemóvel. Talvez lhe estivessem a contar uma piada ou revelado um segredo. Uma outra fechava os olhos e fazia a sua viagem interior. Emanava uma corrente positiva e certamente que lhe dava satisfação.
Um senhor procurava algo entre os milhentos papéis que tinha na mão. Estavam todos amachucados e ele abria-os como se fossem preciosidades. Duas senhores comentavam um episódio da novela. Viver as vidas de fantasia sempre é mais fácil que as próprias. Ou serve para as esquecer.
Num outro banco uma rapariga escrevia, num computador, com dedos de raiva e olhos de impaciência. Uma das teclas saltou e veio aterrar no meu colo. Entreguei-lha e a sua cara mudou de tal forma que parecia ser outra pessoa. Sorriu e soltou-se uma luz tão forte que o resto desapareceu.
As cancelas estavam mal dispostas. Umas colaboravam e abriam, mas outras recusavam-se e soltavam apitos tão profundos que incomodavam os ouvidos. A funcionária estava na mesma sintonia: maldisposta e rezingona.
A plataforma costuma estar apinhada de jovens, mas a chuva afastou-os. Poucos e metidos consigo. Os habituais grupos de adolescentes barulhentos estavam em pausa. Chega o metro. Entradas ordeiras. Nada normal. Deve ser um dia diferente.
A carruagem estava quase vazia. Vejo um casal de velhotes de mão dada. Ele de boné, todo janota, gravata clássica e calças de ganga. Ela de vestido vistoso e lábios bem vermelhos. Trocam olhares como se fosse a primeira vez que se passeiam. Que maravilha manter assim a chama acesa.
Mais à frente duas raparigas beijam-se. Querem lá saber de caras tapadas! De cabelos longos e soltos querem ser elas e nada mais. O amor é para ser vivido em todos os tempos. Por momentos pensei estar numa nuvem ou num filme da Fox Life. A paz e o calor humano reinavam naquele espaço.
Quase desejei que o tempo, esse descarado, congelasse e me deixasse ficar como espetadora de tão belo cenário. Uma voz acordou-me dos pensamentos pueris. Próxima paragem: blá, blá, blá. Suspiro. É a minha vez de sair daquele mundo tão curioso. Uma das raparigas levanta-se. A outra diz-lhe adeus até a perder de vista. Os velhotes estavam de olhos nos olhos e as mãos continuavam dadas.
Há quem perca estas cenas da vida real por não saber o que existe além do seu pequeno mundo. Tenho sorte. Todos os dias os episódios são diferentes e os guiões improvisados. Há tanta vida a pulsar e só temos mesmo é que a saber aproveitar.
A chuva é tão poética…