Os filhos da mudança

Na semana passada, mais propriamente no dia 27, PD James deixou-nos, aos 94 anos. Talvez este nome seja mais conhecido para os amantes de romances policiais, o que não é o meu caso, e pouco possa dizer à maior parte de nós, mas existe uma obra desta senhora que me marcou e que não poderia deixar passar neste momento.

Em 1992, foi lançado um livro que, na época, e ainda hoje, trazia-nos um cenário algo dantesco, embora, a meu ver, visionário e um enorme alerta para a nossa sociedade. Falo de Os Filhos do Homem, adaptado, anos mais tarde, ao cinema, com as participações de Clive Owen, Julianne Moore e Michael Cane, entre outros. Há quase 10 anos, quando vi o filme e, de seguida, li o livro, houve uma abertura de espírito que até aí não se tinha revelado e que, acredito, tenha acontecido a outros como eu.

A história passa-se em 2021 (no filme é em 2027) e vivemos num mundo assolado por caos, pois devido a uma crise mundial de infertilidade, há um quarto de século que não nasce uma criança. Esses últimos jovens são uma geração com um enorme potencial, mas, devido a serem os últimos, quase idolatrados por representarem a esperança do prolongamento da vida na Terra, tornaram-se uma geração arrogante, violenta e cruel.

Olhar a sociedade a caminho do caos completo, é vermos a natureza humana no seu nível mais básico e simples, o da sobrevivência. De certa forma, quando olho para a história neste livro, vejo um pouco o mundo de hoje, uma sociedade envelhecida, em muitos pontos desesperada, porque as bases que conhecia e às quais se tinha habituado, de repente, deixaram de existir. A esperança de um mundo diferente reside numa geração com a qual, muitas vezes, temos dificuldade em nos identificar, uma geração que culpa a anterior pelas oportunidades que não tem e que, muitas vezes, aproveita-se disso mesmo.

A mudança social (e nós estamos a viver uma bem forte) traz-nos conflito. Muitas vezes o conflito exterioriza-se em reacções e estamos cansados de ver as mesmas, vezes sem conta, mas, na realidade, o maior conflito que vivemos é o interior, o abalo que nos obriga a rever os nossos conceitos pessoais, a nossa forma de estar, a compreender que não foi o mundo que mudou, mas sim cada um de nós que cresceu e evoluiu. O desafio é deixarmos de fazer parte daqueles que acham que não é nada connosco, como o protagonista da história, que vivia a sua vida normal até se ver envolvido no enredo, e entender que todos fazemos parte da solução.

Se, como no livro, nos apercebêssemos que a Humanidade estava prestes a terminar, o que faríamos? Quem decidiríamos ser se o mundo que nos rodeia estivesse no fim? Contudo, não é exactamente isso que vivemos todos os dias? Ao fim de menos de 100 anos, para a maior parte de nós, o mundo termina. A questão é que passamos a vida a preocupar-nos com um suposto legado para gerações vindouras e esquecemo-nos que nada de bom podemos dar se não estivermos, nós também, bem. A melhor coisa que podemos dar às gerações que agora são crianças e às que ainda vão nascer, é o facto de sermos pessoas felizes e completas, que se sentem realizadas, e não um conjunto de autómatos sociais que vivem para criar uma riqueza artificial para quem há-de vir.

É preciso reflectir sobre a sociedade, sem dúvida, mas é preciso, acima de tudo, viver. Se isso não acontecer, deixaremos de ser necessários na Terra, pois apenas aqui viemos, efectivamente, viver.

Como se vê no filme, num determinado momento, em graffiti numa parede, “o último a morrer, por favor, que apague a luz.”

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