“Por qué?”

Cheguei cedo e estacionei no local do costume. Saí do carro ajustando o casaco, que o frio da manhã era notório. O edifício mal se notava por entre o nevoeiro que se adensava junto ao rio. No entanto, não pude deixar de atentar em algo que não estava lá no dia anterior: numa das arcadas, sem sapatos, um homem sentado no chão. Magro, média estatura, um pequeno saco do lado. E uns pés descalços, arroxeados, na fria calçada portuguesa.

Segui caminho, o que lhe diria eu? Olhei o saco do almoço e vi o embrulho da merenda que trazia para o lanche. Pensei em dar-lha, mas logo hesitei. Como reagiria? Pensei de mim para mim que não posso reagir a tudo o que vejo, há muito que deixei de ter a soberba de achar que posso salvar o mundo. Adiei a decisão, na dificuldade de esquecer o assunto, comprometendo-me a não fazer nada de imediato, ficando apenas atenta àquele ser.

Chego ao escritório, ligo o computador, o ar quente. Noto que me esqueci do telemóvel no carro. Saio para a rua, omitindo-me da responsabilidade que o universo tomou a seu cargo, fazendo-me voltar a passar por ele, desta vez de merenda na mão, ainda quente, embrulhada no papel pardo. Justifico a mim própria que desta vez não fui eu a tomar a iniciativa. Penso também que de facto tudo nos é permitido, desde que consigamos um argumento. Na vontade de ver nisto uma dica para o contacto que ainda assim adiei, aproximo-me dele e estendo o embrulho. Disse-me, num castelhano que não domino, que não percebia. Fiz-lhe sinal se queria comer, num inexpressivo gesto de máscara posta. Aceitou, mas deixou-me sem resposta, e acreditem que poucas vezes isso me aconteceu, quando me perguntou:  por qué?

Eu tinha a resposta, mas não quis dar-lha. Não podia dizer-lhe que me fizeram confusão os pés gélidos. Que tinha visto um saco pequeno junto dele onde com certeza não caberia comida. Que me senti profundamente perturbada pela sua exposição ao frio. Que senti a sua debilidade. Que era visível a sua carência.

Fui trabalhar, permanecendo na minha ideia aquele homem que me deixou sem palavras. Ocorreu-me que estaria apenas de passagem, porque, ao contrário de outros, não tinha cartões nem cobertores ou sacos de tudo e de nada, ou talvez fosse apenas um recém-chegado. Eventualmente estaria perdido, não só geograficamente, mas na sua própria vida. E eu senti-me igualmente perdida, sem saber como agir, como falar, eu que não tenho solução para o caso, mas que ainda assim não consigo passar adiante.

Em tempos, houve outros sem-abrigo por aqui. Habituámo-nos a vê-los com a sua parafernália oculta aos olhares mais desatentos, desdobrada ao anoitecer como móvel encastrado. Alguns eram rudes, outros pediam dinheiro que era gasto em vinho no supermercado mais próximo. Outros ainda pediam comer e algumas pessoas chegaram a pagar-lhes uma sopa no café da zona. Outro, mais excêntrico, vivia na rua, mas de manhã pegava no tablet e era vê-lo no café a ver as notícias do dia. Alguns tinham mesmo histórias ligadas ao cais, e conta-se até que um deles terá tentado fugir com uma vaca que foi descarregada dum navio. Habituámo-nos. Como é possível habituarmo-nos?!

Quando saí já não o vi e confesso o meu alívio, cobarde alívio, porque já não precisaria enfrentá-lo se voltasse a perguntar-me: porquê? Ou sendo menos auto focada, mais que isso, optimista, talvez tivesse um plano, e tivesse partido na sua concretização. Contudo, na manhã seguinte lá estava ele, com uns cartões angariados, com mais um saco onde consegui vislumbrar laranjas. Permaneceu. Os pés roxos também. Ao ver que a cidade acordava, arrumou as coisas  num cantinho e partiu. Não o voltei a ver nesse dia. Mas ao anoitecer, o volume de sacos tinha aumentado. Percebo, pelo volume, que será roupa. Mais alguém pensa nele. Há quem lhe vá deixando, na sua ausência, um conforto.

O que se diz a alguém assim? Como passar por ele sem o ignorar, mas também sem que ele veja a dor no nosso olhar? Como fazê-lo sem o melindrar, sem parecer que lhe dizemos que a sua pobreza é tão imensa que é impossível não notar? Sem o ofender na assunção de que precisa de ajuda? Como abordá-lo, se não temos soluções? Temos nós, cidadãos comuns, que ter soluções? Ou devemos, na fraqueza de princípios, sacudidela do capote, esperar que alguém, entidade, associação ou outro, tome a si a dura tarefa e converse com ele, se inteire da sua história? Isso faz de nós seres fugitivos aos problemas? Ou de forma oposta, somos intrometidos na vida alheia? O que pode cada um de nós fazer efectivamente?

À pergunta dele – por qué? – junto a minha: como reagir a?

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