Mais do que um grande realizador, Billy Wilder foi um argumentista sublime. Nessa condição “agarrou” o Cinema e, com o toque de Midas viria, como poucos, a apurar as duas dimensões em que se destacou na arte de contar uma história: a realização e o argumento. Tendo iniciado a carreira na elaboração de guiões desde os primórdios do sonoro, foi transformando em ouro as comédias, dramas, filmes negros ou romances com os quais, a partir da década de quarenta, acumulou a direcção. No final, saldar-se-ia com doze nomeações como argumentista e oito enquanto realizador, levando para casa seis estatuetas (três pelo guião, duas pela direcção e uma pela produção).

O meu amor ao Cinema foi crescendo com a visualização dos seus filmes desde o dobrar da adolescência tendo sido um dos homens da sétima arte que mais contribuiu para eu ganhar o respeito que hoje tenho pela comédia, para mim um dos géneros mais difíceis.
Ao recuar vinte anos, não consigo isolar o primeiro filme de Wilder que vi, talvez por todos eles (e vi oito) possuírem uma constância, no que à qualidade concerne, que os eleva, não por igual, mas o suficiente para eu ter perdido de vista o ponto de partida. Contudo, de forma alguma a minha opinião se distribui equitativamente por todos eles: há dois que se elevam, e curiosamente nenhum tem na comédia o esqueleto que segura a trama.
Pagos a Dobrar é o filme sobre o qual Hitchcock terá dito que gostaria de ter realizado. Estreado em 1944, a obra tornou-se desde logo um dos expoentes do filme negro, com todos os ingredientes desse género tão “dono” de uma época: Barbara Stanwyck – a femme fatale – e Fred MacMurray, seu amante e agente de seguros, matam em conluio o marido dela engendrando um esquema para ficarem com a indemnização da apólice, não contando com a perspicácia do investigador de seguros Edward G. Robinson para lhes estragar os planos. Para quem queira iniciar-se no género, Pagos a Dobrar poderia constituir uma entrada pela porta grande.

Começando no jornalismo (apesar de ter estudado Direito), foi em Berlim (vindo de Viena) que Wilder despontou para o cinema. Os argumentos com que enriquecia o cinema (e por ele era enriquecido) alemão cessaram em 1933 com a ascenção de Hitler ao poder: os antepassados judeus poderiam trazer-lhe problemas e o autor emigrou, primeiro para Paris, depois para os Estados Unidos onde o seu génio criativo despontou. “Os austríacos eram o melhor povo à face da Terra pois convenceram o mundo inteiro de que Beethoven era austríaco e que Hitler era alemão!” diria mais tarde com o sentido de humor que viria a estar presente na sua cinematografia (apesar de ter nascido em Sucha, no antigo Império Austro-húngaro, actual Polónia, assumia-se como austríaco). Iniciou-se em solo estado-unidense no período dourado da comédia americana tendo assinado os roteiros de filmes como Ninotchka, A Oitava Mulher do Barba Azul, Meia-Noite ou Bola de Fogo, dignos representantes desse género tão esquecido, mas muito popular à época.
No ano seguinte – 1945 – vieram os primeiros óscares com o filme da vida de Ray Milland, Farrapo Humano, e um dos primeiros a tratar abertamente o tema do alcoolismo. Wilder levaria para casa os prémios de Realização e Argumento, este último juntamente com Charles Brackett, o seu parceiro de longo prazo na elaboração dos guiões, duo que se manteve até decidirem seguir caminhos separados depois do óscar que voltariam a alcançar pela magnífica história de O Crepúsculo dos Deuses, cinco anos mais tarde.

Lembro-me de ter comprado O Crespúsculo dos Deuses e de introduzir o DVD com uma espectativa que, duas horas depois, não só não saiu defraudada, como ainda hoje se alimenta da ideia que então formei e que permanece: um dos melhores filmes que já vi. Não me alongarei sobre a obra uma vez que ela já foi tema de um artigo que aqui publiquei há ano e meio.
Em 1953 dirige William Holden num filme que comprei e tomei, na altura da compra, por uma daquelas peliculas que, mais do que trazerem para a nossa vida a possibilidade de brilharmos através do contacto com as grandes obras, consubstancia e alicerça o verdadeiro conhecimento de uma época, dos artistas, e do cinema na sua globalidade, seja pelo encontro com o valor de obras ofuscadas pelos grandes títulos, seja pelo que vão acrescentando à construção do conhecimento de uma arte que nos apaixona. Arrisquei a compra e O Inferno na Terra trouxe-me uma agradabilíssima surpresa (é assim que hoje o vejo: não voltei a ele, passados dez, quinze anos talvez). A história passa-se em 1944 num campo de prisioneiros aliados. Quando dois fugitivos são mortos depois de tentarem a fuga, tem início a desconfiança, elevando-se a principal suspeito o cínico Sefton, interpretado por Holden no papel que lhe valeu o óscar.

Seguiram-se as comédias, sobrepondo a cronologia à ordem por que entraram na minha vida: Sabrina (1955) reúne um trio de luxo com Bogart e Holden em disputa pelo amor da belíssima Audrey Hepburn; Quanto Mais Quente Melhor, do último ano da década, tido como uma das melhores comédias de sempre, rótulo que inchou o balão da expectativa em que entrei para o ver, esvaziando-se logo de seguida com um “é divertido mas daí a ser das comédias melhores de sempre…”; contudo, vale a pena ver Jack Lemmon e Tony Curtis disfarçados de mulheres, acompanhando uma banda feminina (onde se perdem por Marilyn Monroe) para fugirem aos gangsters que os perseguiam devido a um crime que haviam testemunhado por acaso; no ano seguinte – 1960 – O Apartamento, volta a trazer Jack Lemmon, desta vez ao lado de Shirley MacLaine para o filme que consagrou em definitivo Billy Wilder, alcançando o pleno na cerimónia dos óscares do ano seguinte com três prémios (Filme, Realização e Argumento). Uma vez mais: divertido mas ok…
Pelo meio, em 1957, e julgo ter sido este o último filme de Wilder que vi, Testemunha de Acusação, um clássico do drama de tribunal com esse vulcão chamado Marlene Dietrich, numa fase madura da carreira e em que as aparições no cinema já não se davam com a frequência dos loucos anos trinta. Baseado numa peça de Agatha Christie, o filme é revelador de toda a potencialidade, mestria e versatilidade de Wilder, além de, uma vez mais, congregar uma constelação de estrelas com Tyrone Power e Charles Laughton a juntarem-se a Dietrich para uma obra monumental.
A carreira de Wilder começou a abrandar a partir da década de sessenta mas o seu trabalho estava feito: ajudara a construir e, mais do que isso, a definir o cinema tal como o vemos. Não importava o género, o que quer que fizesse, fazia-o bem. Os oito filmes que vi são representativos da enorme riqueza e importância da sua obra. A sorte de nos cruzarmos com um período histórico em qualquer área da existência só se materializa se a soubermos agarrar e Billy Wilder soube trilhar o seu caminho e encontrar o espaço num momento em que o cinema se fazia Cinema.
Billy Wilder faleceu em 2002, com noventa e cinco anos. Desde 1981 que deixara a realização. Resta-me agradecer, O Crepúsculo dos Deuses, Pagos a Dobrar e toda a magia que nos (me) ofereceu.