A Madragoa, para quem não conhece, situa-se no coração da nossa bela Lisboa, em Santos-o-velho, e faz parte da freguesia da Estrela. Esta coisa do coração de Lisboa tem que se lhe diga, pois é cidade que parece ter vários corações, tantos quantos os seus bairros históricos, e a Madragoa é um deles.
Este nome, Madragoa, tem origem no Convento das Madres de Goa que lá se situava. As pessoas que a habitavam eram das mais diversas origens, dado o seu posicionamento à beira do Tejo, abrigando desde pessoas que amanhavam os campos, aos pescadores que fainavam o rio. De facto, ainda é possível que na Madragoa se faça ecoar o pregão das varinas.
Hoje em dia a diversidade cultural continua a fazer-se sentir. Ainda por lá habitam as varinas e pescadores de outros tempos que, agora velhinhos, contam as histórias de um dia, quando foram novos. Por se conhecerem, as pessoas tratam-se pelo nome, cumprimentam-se na chegada e despedem-se com um “até logo” (se Deus quiser), porque cruzarem-se mais tarde é quase tão certo como o destino. Conhecem bem a Madragoa, sabem quando alguém não é de lá e não poupam olhares a desconhecidos em tom de questão, porque estarão ali a passar. Qualquer que seja o novo residente será digno de um esmerado olhar, na tentativa de se tirar a pinta se será de confiança. Para a Madragoa, qualquer morador novo é estranho mas, mais tarde ou mais cedo, ou se entranham nela ou ela se entranha em nós.
Passado o processo de estranheza, selecção e acolhimento, quando pensamos que já ambos estão habituados a cada presença, é quando se dá início às quezílias. É que, até à data, se julgavam que as campainhas eram feitas para tocar, na Madragoa perderam a sua função para dar trabalho às vozes esganiçadas que chamam o “ó da casa” e não se calam enquanto alguém, seja o próprio a quem batem ou o vizinho, venha à janela para as fazer cessar. Isto é coisa para irritar, principalmente se se viver no rés-do-chão… é isto e as crianças que brincam na rua e gritam como se não houvesse amanhã. Nem os bolos e doces as fazem parar (ou não fosse o açúcar bomba energética para o sangue), o que transforma qualquer eventual descanso numa missão impossível. O vizinho, esse, das 15h até não se sabe bem onde finda a hora, com a música em alto e bom som, muitas vezes fazendo rodar no seu mp3 sempre a mesma cantiga, é combinação perfeita que poderá levar à saída de casa para nunca mais lá voltar. Podia ser um cenário de guerra, mas o que se passa está longe de provocar retaliações.
As vizinhas que batem com a voz relembram um antigamente, onde as pessoas se relacionavam e não dependiam de um monitor para conversar entre si. As crianças na rua em mote ao barulho que se torna música para os ouvidos, reacendem a esperança de que ainda existem joelhos esfolados em vez dos dedos calejados por um comando ligado ao televisor. A música que passa em repeat, de tão irritante que é, faz esboçar um sorriso e pensar “ó vizinho, um dia grito também eu por si para lhe mostrar outra cultura musical”. O barulho é mútuo e é perdoado: um dia sou eu, outro dia és tu e, assim, vivemos em verdadeira comunidade. Sinceramente até é ideia para parecer pré-histórica mas não, a Madragoa nada tem de pré, tudo tem de histórica, o que lhe confere um toque verdadeiro, puramente humano e onde a tecnologia ainda não se instalou.
De facto, a Madragoa está na moda e tem vindo a ser eleita para morar, dada a sua localização privilegiada e as rendas ainda baixas, comparativamente a outros locais Lisboetas, são características que atraem os jovens e que refrescam este bairro de antigamente. A um passo do Tejo, dois do centro de Lisboa, a pé ou de bicicleta, é um sítio peculiar para se morar e, garantidamente, quem por lá passa não ficará imune aos seus encantos.