Existe uma crença arreigada na palavra saudade como definidora de um ser ou estar português. Quase nem é preciso explicitar a ideia de saudade: é um beijo dado ao pôr do sol, o abraço dado a quem já não está, um odor evocador de momentos mais felizes.
Não pretendo aqui elaborar uma doutrina sobre a saudade e a relação dessa palavra com uma certa forma de ser-se português. Ter saudade é albergar a disposição de pensar e comportar-se de uma certa forma; de facto, assenta na preferência por certo tipo de conduta em detrimento de outra. Sentir saudade significa estar na disposição de fazer certos tipos de escolhas.
Não é difícil discernir as condições deste tipo de disposição, embora existam muitos equívocos a este respeito. Sentir saudade é procurar outra coisa para além do que está disponível e usufruir do que já foi em vez do que é. A reflexão poderia trazer à luz uma certa gratidão pelo que existe como resultado do passado, mas escolher sentir saudade pode transportar-nos para a idealização do que desapareceu. Para algumas pessoas, esta disposição para a saudade é bastante forte, pois as escolhas são poucas e a experiência de viver neste mundo parece resumir-se a uma falta de oportunidades em série.
Nutrir a saudade poderá saldar-se numa proximidade maior aos entes queridos? Assim parece. Podemos preferir o familiar ao desconhecido e remeter-nos à lealdade de família e amizades em vez dos conhecimentos com potencial para maior lucro. Cultivar, manter e usufruir parecem ser as palavras-chave desta disposição. No entanto, por que nos debruçamos sobre o passado e colocamos uma película dourada em determinados momentos que não se voltarão a repetir?

Estarmos próximos de alguém não significa, necessariamente, evocarmos memórias para aferirmos a qualidade da relação com essa pessoa. A saudade pode revelar-se a grande rival dos relacionamentos, uma vez que impede a fruição e construção de novos momentos.
Talvez a identidade de cada um de nós, e das nossas comunidades, seja um ensaio contínuo de contingências, como diria Oakeshott. Os momentos por que ansiamos agora terão sido uma contingência do passado, e apostarmos a nossa energia nesses momentos poderá ser uma forma de abraçarmos um passado sem hipótese de ressurreição.
Entre a saudade e ansiedade, esquecemo-nos de encarar o presente como mais do que uma forma de perpetuar uma era de ouro ou uma porta para um futuro mais brilhante. E assim descentralizamo-nos de nós e ingressamos nas fileiras da alienação propostas pela pós-modernidade.