Séneca, na sua sabedoria intemporal, afirmou: «Sejamos no íntimo absolutamente diferentes, embora na aparência vivamos como os demais» (Cartas a Lucílio, 5.2).
Este pensamento inspirador convida-nos a refletir sobre a dualidade entre o que somos interiormente e aquilo que aparentamos ser. Tal ideia ganha força quando analisada à luz da pobreza e, por exemplo, do romance Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago ─ duas realidades que revelam, de formas distintas, as camadas exteriores e interiores da condição humana.
A cegueira, no romance, conduz ao colapso da civilização, expondo uma “pobreza” que não é apenas material, mas também ética. A reflexão de Séneca pode ser interpretada como um apelo à resistência face a uma pobreza moral coletiva. Mesmo em pleno caos, subsiste a possibilidade de escolha: ser compassivo, preservar a dignidade ou ceder ao egoísmo.
Mais do que uma simples privação material, a pobreza manifesta-se mediante uma espécie de vergonha insuportável. Não é apenas a falta de recursos que oprime, mas também a sensação de indignidade que acompanha a exclusão social. Sentir-se inferior. Tornar-se invisível aos olhos dos outros. Esta é, talvez, a face mais cruel da miséria. E é nesse contexto que a generosidade, quando verdadeira, assume um papel transformador, resgatando a dignidade perdida.
José Saramago, em Ensaio Sobre a Cegueira, explora a fragilidade da condição humana, numa sociedade em que todos perdem a visão: «não nos vemos se não saímos de nós próprios». A pobreza, tal como a cegueira, é uma forma de alienação social — um estado que obscurece as diferenças individuais, uniformiza as aparências e despoja as pessoas da sua identidade.
Quem nunca olhou para um sem-abrigo encostado à parede e questionou como ali chegou? E, mais importante, fez algo para além de pensar nisso, apesar das agruras da sua condição? Somos cegos perante o sofrimento alheio quando este não interfere diretamente nas nossas vidas. Paradoxalmente, é essa mesma cegueira que perpetua a pobreza. A incapacidade de perceber o outro permite que ele continue a sofrer.
A alegoria da cegueira humana vai além da incapacidade de ver; aborda uma privação moral, social e política. No mundo que Saramago constrói, uma epidemia de cegueira súbita força-nos a encarar o abismo da humanidade — o que somos capazes de fazer quando deixamos de reconhecer o próximo.
O autor descreve ao pormenor a cegueira que atinge um oftalmologista, recordando um episódio da sua adolescência no jogo “E se eu fosse cego”. Ele conclui que, embora tal condição fosse uma «desgraça, poderia ser suportável se a vítima de tal infelicidade tivesse guardado uma lembrança suficiente […], supondo, claro está, que a dita cegueira não fosse de nascença» (Saramago, 2022, p. 14). Esta reflexão sublinha a importância das memórias visuais na adaptação à perda de visão, ao mesmo tempo que destaca os desafios de compreender o mundo sem tais referências.
No seu romance, a experiência da cegueira leva-nos a confrontar as fragilidades da humanidade. Uma ideia que ressoou particularmente durante o confinamento provocado pela pandemia de COVID-19 em Portugal, e que provocou um isolamento físico e social comparável a uma forma de cegueira coletiva. Tal como o oftalmologista reflete sobre a capacidade de suportar a cegueira com memórias visuais, o confinamento trouxe uma sensação de isolamento físico e social, levando as pessoas a recorrerem às suas lembranças de tempos pré-pandemia como forma de conforto emocional.
Em Portugal, onde o isolamento foi particularmente rigoroso, no contacto com o mundo externo ─ seja pelas restrições à circulação ou pelo distanciamento social ─ criaram uma espécie de “cegueira coletiva” relativamente ao presente e ao futuro. No entanto, nesse contexto, surgiram esforços da comunidade para criar laços e mitigar o isolamento: vizinhos que partilhavam músicas e palavras de incentivo das janelas, eventos virtuais que aproximavam quem estava longe, redes de apoio local que promoviam a entreajuda. Esses momentos demonstraram que, mesmo em tempos de afastamento físico, a solidariedade e o sentido de pertença podiam florescer. As memórias de vivências passadas tornaram-se também âncoras para suportar a solidão e o medo que marcaram o período.
Na privação extrema, a sobrevivência depende da solidariedade — ou da falta dela. Mais do que o pão, é a mão estendida que salva, ao reconhecer o outro como igual. Generosidade não é caridade esporádica, mas a capacidade de ver no próximo o nosso reflexo. A pobreza parece invisível e, ao mesmo tempo, constantemente exposta, como quando vemos um sem-abrigo à porta de um supermercado ou uma mãe com um filho nos braços a pedir esmola. Contudo, existe pobreza para além do que os olhos conseguem alcançar: nas promessas vazias de quem governa, nas estruturas que perpetuam desigualdades, na ausência de oportunidades impostas por circunstâncias que nos tornam incapazes de reconhecer as necessidades alheias. Talvez a verdadeira cura para esta alienação social esteja no reconhecimento de que todos somos parte de algo maior — e que a pobreza de um é, na verdade, a pobreza de todos.
Cegueira velada é a ausência de empatia, a falta de consciência coletiva. É imperativo aprender a ver com os olhos do Outro, sentir a sua dor e partilhar as suas lutas. Enquanto continuarmos a tratar a pobreza como um problema alheio, seremos nós os verdadeiros cegos — incapazes de reconhecer que, ao ignorarmos o sofrimento dos outros, estamos a negar a nossa própria humanidade.
Nota: Este artigo foi escrito seguindo as regras do Novo Acordo Ortográfico
A miserabilidade da condição humana quando o seu semelhante assobia oara o lado. Bravo!
É um facto cada vez mais presente. Muito obrigada pela tua partilha, Maria!
Este tema da Cegueira social e política impede a solidariedade, a justiça, a equidade de oportunidades, a responsabilidade. Tão atual no nosso tempo. Olhamos para o lado ou subestimamos os que precisam de ver no outro afeto e compreensão. O problema existe por esse mundo fora, com lutas renhidas , morte de inocentes, crianças, idosos e a destruição de casas, bens e vidas.
Felizmente, há quem se preocupe, denuncie, ajude.
Esta crónica ajuda-nos a refletir e a agir, de modo a trazermos luz para nós e para os outros.
Parabéns, querida companheira!
É bem verdade, querida Leonilda! Ainda há quem esteja atento e ajude, porém não é suficiente.
Grata pela preciosa partilha.
Tanta gente cega só porque não quer ver.