A vida permite-nos encontrar momentos escondidos pela eternidade. Instantes mais prazerosos que esperados. Mas não fiquemos pelos sentimentos cliché, comprovemos, mergulhando mais fundo, como isto é tão real e concreto.
Partindo da Arrifana, para mais um dia de praia o céu trancou-se ao abeirarmo-nos, outra vez, daquela costa. Falo da vicentina, que nos acolhe sempre com o seu suave vestido azul. Desiludidos, com a insistência de mais um triste verão costeiro ficamos apenas a fitar o mar. Haverá este luxo na nossa ruidosa cidade? Penamos silenciosos. Porque não estamos habituados ao tédio, dirigimo-nos à esplanada mais próxima e continuamos a contemplar a natureza, agora mais entretidos, a mastigar e a beber. Cacimba e paz nos abraçam.
Haverá praia no mundo que equilibre melhor o toque humano e a essência da natureza, que esta? Penso que não. As pequenas casas de telhados triangulares vestem-se de cores inesperadas. Um rosa desbotado, um verde russo ou um amarelo salgado são consequências do mar ali à frente. Sabemos que ninguém pode viver naquelas casas pois não há contos de f*das. No entanto, imagino como seria se fossem habitadas.
Lá, um casal de idosos alentejanos com os filhos já criados e roubados pelo buliço das metrópoles deixaram algo para os pais continuarem vivos e entretidos. Por isso, a Avó sai bem cedo, desce para a sua sala deserta, coberta pelo tapete de areia e traz água para cozer os percebes mais tarde. O Avô ainda se permite equilibrar nos trépidos ossos, que fazem balançar toda a sua pele escura e cansada por demasiados anos na traineira para cá e para lá, indo buscar pão à casinha do lado que permanece uma fábrica ilegal de cozedura desse cereal. Felizes aqueles netos que trocaram o alcatrão pela liberdade incondicional das cores que deviam preencher o nosso mundo. 🌈
Sentados na esplanada, chega a tosta, a imperial e as histórias da trabalhadora que, afinal, sofre de solidão. Doença que mata os seniores, também ataca alguns menos idosos. Faz-se uma pergunta e brotam mil confissões. Da sua cidade até à esplanada da praia de Monte Clérigo distam cerca de cinco mil quilómetros, menos dez graus e mais umas quantas toneladas de sisudez. Um simples emprego como atendente às mesas pode ter custado assim tanto a alguém? Sim, um posto destes em Portugal vale 600 euros mensais. E isso vale a vida de alguém. Merece uma família abandonada, um voo oferecido pelo antigo patrão, crianças com crises de identidade e episódios de xenofobia. O Brasil afinal não produz apenas sorriso, samba e chope. Ali à beira da praia havia muito mar de lágrimas escondidas.
Há dias falava com uma amiga do norte da Roménia, Bogdana, que me contava como a filha, numa escola algarvia, levou com um pau na cabeça durante um intervalo das aulas. Sangue que escorre por feridas que não cicatrizam. Presentes oferecidos por certas crianças portuguesas, embaladas por uma xenofobia de berço.
Esqueço a vergonha, dispo-me da esplanada quase vazia e parto. Não quero saber das nuvens cinzentas, o assobio do vento ou os vinte e pouquinhos graus que estão naquela praia, e afastam as almas inconscientes que não se atrevem a ser felizes. Entro no mar e permito-me ser criança. Livre. O mar inteiro, a praia toda e uma mundividência de silêncio só para mim. Isto não chega. Sabemos que as palavras são jaulas, não é Wittgenstein? Palavras permitem expressar coisas até certos limites e nem me atrevo a tentar ficar mais próximo de conseguir descrever aqueles instantes.