Memórias de uma serrana

Não se entusiasmem, que não é um remake, ou lá como se chama isso, do conhecido filme “Memórias de uma Gueixa”. É só mesmo uma serrana que se passou da cabeça e decidiu aventurar-se.

Serrana é uma palavra que gosto. A sério que gosto. É tipo uma carateristica para quem mora na minha cidade, Guarda. É como chamar alfacinhas aos lisboetas ou tripeiro a quem vive no Porto. E acreditem que já tive pessoas a perguntarem-me se vivia realmente no meio de uma serra, se tinha rede móvel e a melhor de todas, se tinha água potável. Gente… então? Não vivo no terceiro mundo, vivo só no interior do país. Eu sei que por si já é “mau”, mas não façam dele pior do que realmente é.

Sempre vivi no interior do país, bem pertinho da Serra da Estrela. Com o arzinho bastante puro, com os floquinhos de neve de vez em quando a cairem até conseguirem encerrar as escolas, entre outras maravilhas.

Lembro-me em miúda de pensar que viver no interior do país era luxo, que na minha opinião ainda continua a ser, não monetáriamente infelizmente, mas devido às riquezas naturais que temos. Lembro-me, quando caíam aqueles grandes nevões, a primeira coisa que fazíamos era sintonizar nas rádios locais para perceber se as escolas estavam encerradas. Percorríamos as rádios todas, até ouvirmos as palavras mágicas: “Informamos que as escolas estão encerradas, devido ao grande nevão que caiu esta noite”. Oh que palavras mágicas! Tirava o pijama completamente em êxtase, calçava as minhas botas da neve, cachecol, gorro, luvas, o meu blusão de penas e lá ia eu rebolar para a neve toda contente, como se não houvesse amanhã. Eram tempos e infâncias completamente diferentes.

Confesso que tenho pena que os miúdos das gerações seguintes não tenham vivido e nem vivam aquilo que eu vivi. Parecia a Alice no País das Maravilhas. Brincávamos o dia todo até escurecer e as nossas mães, das janelas todas chateadas, gritarem umas dez vezes os nossos nomes para irmos jantar. Não havia aquela preocupação se comíamos as bolachas antes do jantar, ou se comíamos batatas fritas com ovo estrelado mais que uma vez por semana. As nossas mães adoravam que tivéssemos um apetite foraz e comêssemos que nem lontras esfomeadas. Lembro-me perfeitamente do abuso dos chocolates. Quando me caía um dente (que era sempre uma tortura horrível para mim), a recompensa que a minha mãe me dava, pela choradeira e drama que fiz por arrancar um dente, era um ovo Kinder. Parecia o acontecimento do ano lá em casa. E, como é obvio, a “fada dos dentes” deixava-me sempre uma prendinha pela minha coragem e bravura. Hoje, as crianças vão ao dentista para arrancarem os dentes. Perderam a essência.

Lembro-me de brincar nos campos dos meus avós, enquanto estes faziam os trabalhos que a agricultura exigia. Já ouviram falar de bolos de lama com batata? Fiquem a saber que eu era profissional nisso. Fazia a cabeça dos meus avós em água, porque tanto eu como os meus primos éramos uns rebeldes. Contudo, aviso que ser rebelde naquela altura era ficar até escurecer na rua, era molhar os pés nos “regos” dos morangos, quando os meus avós regavam a horta, era ligarmos a mangueira e ver quem se molhava primeiro e era, acima de tudo, ter brincadeiras inocentes. Do que diz respeito à televisão, o único programa que via de tarde era o “Batatoon”, quando regressava das aulas, e à noite era sagrado vermos o “Ponto de Encontro” com o Henrique Mendes. Esqueçam lá os tablets, iphones, computadores. Nem sonhávamos sequer o que era isso e nem nos interessava sinceramente. Éramos felizes com o que tínhamos, que para nós era o mundo! Comíamos gelados quase todos os dias e, digo-vos já, que sabiam melhor, quando os comprávamos na carrinha ambulante “Family Frost”, com aquela música a dar sinal de chamamento.

No entanto, todo este mundo de fantasia foi desvanecendo à medida que fui crescendo. Percebi que existia um outro mundo para além daquele. Comecei a perceber, onde infelizmente, as oportunidades residiam. E não era no interior do país. Formei-me em Jornalismo e vim para Lisboa tentar a minha sorte, como a maior parte dos jovens. Tive de deixar o meu mundo mágico para trás, juntamente com a minha familia. Tenham calma, é verdade que não emigrei para outro país, mas este foi o único choque de realidade que tive, no que diz respeito a mudanças de casa. “Caí” em Lisboa de paraquedas e percebi no que estava metida: confusão, poluição, trânsito, indeferença, selva, lei do desenrasca, entre outras características. Na primeira semana de trabalho, o meu carro decide avariar em plena Calçada de Carriche em hora de ponta matinal. Boa! Toma aí uma bela praxe. Tive de me desenrascar, como é obvio, senão era “comida” pelas dezenas de carros que já me estavam apitar com a raiva toda. Consegui, porque uma serrana não se deixa ficar. Pouco tempo depois, não sabendo ainda bem o caminho para casa, o meu telemóvel fica sem bateria e fiquei sem GPS! Escusado será dizer que andei horas perdida a tentar encontrar o caminho de volta para casa. Confesso-vos em primeira mão, que durante o primeiro mês, eu não desfiz a mala, caso me arrependesse, era só pegar na sacola e ala que se faz tarde.

Um mês depois, entrei no ritmo da cidade. Percebi como as pessoas eram, percebi como a cidade funcionava. Aprendi um novo sistema de cores nos semáforos: o sinal verde é verde, o laranja é verde e 2 segundos do vermelho é verde. Percebi que em dias de jogos de futebol, não se anda de carro e passear na baixa só ao fim-de-semana e de metro! Percebi que ir às compras aos hipermercados era como estar numa trincheira de guerra e que o Colombo é o centro das trincheiras (mas, diga-se de passagem, que é bem fresquinho no Verão). Cheguei à conclusão que pontes e IC 19, são roteiros de fim-de-semana e idas à praia é sair de casa as 7h da manhã.

Descobri um novo inimigo público: a Emel. Sim, porque eu continuo a deixar o carro mesmo à porta de onde quero ir. Temos de dar dinheiro a circular.

Posto isto, cheguei à conclusão que é um outro mundo completamente diferente do meu. Em Lisboa, demoro todos os dias uma hora e pouco a chegar a casa, na minha cidade da Guarda, demorava 10 minutos e ainda tinha mais que tempo para parar na esplanada do café da aldeia, beber umas minis com os jovens da minha geração e mandar bitaites do “trânsito” que estava na cidade naquele dia. Só me rio agora. Coitadinha, inocente ela. Naquele mundo, existe qualidade de vida. Em Lisboa, é uma espécie de qualidade.

Estou a viver há 3 anos em Lisboa. Já gosto disto, gosto mesmo. Só que nunca esqueço o meu mundo, que uma vez por mês me faz querer fazer 300 Km, para estar dois dias a reviver. Confesso-vos que até mesmo esse mundo já se modificou, mas nunca deixará de ser o meu mundo mágico, ainda que seja só nas minhas memórias.

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