A tecedeira de prisões

A cidade à noite é uma partitura cheia de pausas. As ruas de penumbra contrastam com os amarelos, vermelhos, azuis que pontilham as janelas, luzes que se transformam quando atravessam as cortinas. Naquele prédio velho ouve-se o ronronar suave de uma máquina de costura que vem do terceiro andar.

Escuta-se o medo a respirar ainda antes de bater à porta.

“Por favor. Por favor.” Olhos negros e vermelhos de cansaço a insistir.

O braço faz um movimento leve, quase inexistente, que chama a atenção para um banco velho com um copo de absinto. O homem senta-se. Treme de febre ou de pavor e mancha as calças sujas com o álcool verde quando o leva à boca, de olhos cerrados, sem respirar. Arrepia-se.

Ela passa os dedos ossudos pelos rolos de linhas para escolher a certa, as pontas delicadas quase não tocam no fio. É um teatro, porque ela sabe exactamente do que precisa. Já o sabe há muitos anos, desde antes de aquele homem nascer. Coloca a linha na máquina e estende o braço num gesto mendicante. Ele engole em seco e dá-lhe a mão esquerda. Ela vira a palma para cima e ajusta o calcador. Pisa o pedal e sorri – se as irmãs a vissem agora.

A linha fura a pele, atravessa a carne, toca-lhe no centro de quem é. Os gritos deles não a incomodam, mas ela sente algum desprezo. Porque pensariam eles que mudar o destino não traria dor? Enquanto cose, observa o homem, maxilar apertado, gritos que lhe trepam do estômago à garganta, que lhe descem pela coluna, que tocam todos os nervos e saem entre os dentes. Ela vai ajustando a mão dele, a linha a deixar um rasto de sangue. Talvez não fosse preciso esta pequena tortura, mas dá-lhe gosto. Dá-lhe mesmo gosto. Por isso, demora-se. Estuda o rosto dele. Conhece-o bem, mas nunca lhe tinha visto o rosto e o impossível sempre a fascinou.

Tira o pé do pedal. Afasta os dedos devagar e larga a mão do homem. Ele tem a cara molhada, pestanas cheias de orvalho, feições deformadas pela dor. Leva a mão aos olhos nublados, estão quase cegos mas seguem com fascínio aquela nova linha da vida que lhe foi concedida. Ele não percebe tudo o que isso significa. Não quer perceber. Quem diz que quer saber o futuro mente. Na dúvida, tudo pode acontecer. A dúvida é uma bênção.

Ele tira do bolso o pagamento e deixa em cima do banco. Não volta a olhar para ela, não murmura um agradecimento, não faz perguntas. Leva a esperança atada àquela mão, como se também tivesse sido cosida ao mais fundo dele. Fecha a porta. Nunca mais se lembrará daquela noite.

Ela abre o pano para ver o pagamento. Ah, cá está. Mais um pedaço de ilusão. Pega nele e coloca-o junto dos restantes espelhos. Os espelhos sempre a fascinaram, essa tentativa desesperada que os homens têm de se iludir, de achar que se vêem e se sabem e se conhecem. Que amnésia absurda, como sabem ignorar tão bem que nunca se verão. Não realmente. Não de todos os ângulos, por dentro e por fora, com as nuances de realidade que tem cada olhar do outro. Oh, sim, os espelhos são fascinantes. Pequenas prisões que guardam quem eles acham que são.

Ela espreita para dentro do espelho que o homem acabou de lhe dar. Lá está ele. Não quem era quando saiu daquela sala, mas quem foi antes de entrar. Ela afasta-se para ver todas aquelas pessoas que já não existem. E, no entanto, ali estão elas. Um puzzle de prisões com destinos interrompidos. O impossível.

Senta-se de novo em frente da máquina de costura. Troca a linha com cuidado, dedos finos a dedilhar possibilidades infinitas.

“Quem serás tu?” pergunta-se, enquanto ajusta aquela nova alma ao calcador e pisa no pedal.

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