O cheiro do amor

O sono estava em pleno e os sonhos navegavam com suavidade. Era noite alta e não se ouviam sons que pudessem perturbar o descanso daqueles que o mereciam. No andar de cima as crianças viviam aventuras nocturnas dignas de grandes heróis e plenas de emoção. Os adolescentes tinham repousos menos tranquilos e o rebuliço nas camas era sistemático. Os pais usufruíam de mais uma noite que lhes permitia prepararam-se para as batalhas diárias. Só ela estava acordada e inquieta. Sentia um cheiro que não sabia explicar e que a obrigava a ficar alerta.

Desceu as escadas e sentou-se na sala. Era tão raro aquele sossego que nem parecia estar naquela casa. Fechou os olhos e viajou para locais que só ela conhecia e sabia. Como era possível que nunca tivessem percebido quem ela era? Afinal onde estava a liberdade que apregoavam? Ela simplesmente não correspondia aos padrões que estavam estipulados. Aquele silêncio tornou-se tão barulhento que teve de tapar os ouvidos, com as duas mãos e rodar a cabeça. Lá fora, na rua, as pedras dormiam voltadas para o céu.

Levantou-se e apagou a luz. Aquele cheiro continuava a incomodar as suas narinas. Não o identificava. Só sabia que não gostava dele, que lhe trazia algumas memórias que queria apagar. Estranho. Os olhos ficaram pesados e encerraram as pálpebras rígidas que estavam exaustas. Adormeceu. A noite ia alta e zelava pelos seus interesses. Estava muito escuro e a lua escondia-se atrás de nuvens carregadas e potentes. Tudo calmo.

Acordou assustada. Era o cheiro que lhe chegava ao cérebro e lhe avivava a memória. Aquele dia nunca iria desaparecer. Como seria possível? Ela só quis manifestar o seu amor, nada mais. Os amantes beijam-se apaixonadamente e trocam carícias. Ela amava-a e sabia que era correspondida. O jardim foi testemunha daquele primeiro beijo, sentido e virgem. Tocou os lábios da outra menina e foi tão bom! Um violento zás acertou na sua face deixando-a vermelha de dor e de humilhação. Foram afastadas à força e nunca mais se viram.

No entanto, ela não a esqueceu e nunca mais amou ninguém. Que mal tem o amor quando é puro? As meninas gostam de rapazes! Era o que sempre lhe diziam. Colocavam namorados no seu caminho, mas ela afastava-os com facilidade. Dizia-lhes a verdade e nunca mais a incomodavam. Mas ela estava sempre presente. Onde estaria? As lágrimas caíram, quentes e saborosas, saudosas do seu contacto. E o cheiro continuava a crescer de tal modo que a cabeça já não aguentava.

Voltou a fechar os olhos e a sentir aqueles lábios suaves e infantis. Que delícia. Sentiu a presença dela, o seu toque, o seu olhar, os seus braços que se estendiam e a apertavam com tanta força que pareciam unidas para sempre. “Meu amor” murmurou suavemente. O coração bateu mais forte e ela estava ao seu lado, dando-lhe a mão e guiando-a pelo caminho certo.

Quando desceram já não havia nada a fazer. O cheiro insuportável, do gás que ela ligara, propositadamente, para se entregar aos seus devaneios, tinha surtido os seus efeitos. Parecia uma deusa, a sorrir, com as mãos a abraçar fortemente algo que não entendiam. Os cabelos esvoaçavam num espaço e num tempo que era só dela. Tinha partido e estava feliz.

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