A Revolução Silenciosa

Quantos filmes “baseados numa história verídica” se perdem em invenções para prender o interesse ou, mantendo-se fiéis à verdade, vêem fugir a centelha do fascínio?

Decidi ver A Revolução Silenciosa (2018) pela curiosidade que me suscitam as histórias do antigo bloco de leste, por gostar de cinema alemão e por permanecer pouco tempo em cartaz.

Na sala vazia (eramos dois na assistência), enquanto aguardava o início do filme, o sono foi tomando conta dos momentos em que a publicidade me embalava… abri os olhos pela primeira vez quando começava a sonhar com um tigre na selva; da segunda, já com os estúdios e a distribuidora do filme a iluminar a tela, foi uma rapariga quem me apareceu no sonho. O filme começou e, por magia, o sono desapareceu.

A história (verídica) surpreendeu-me como há muito um filme não o fazia.

Eu esperava algo de cariz político, um retrato de época onde os comportamentos, os costumes e a repressão conduzissem os acontecimentos. Assim foi. Mas a surpresa veio com o que o filme me ofereceu, para lá desta “demão” já tão saturada: uma dimensão humana tão sincera que as lágrimas me afloraram aos olhos por duas vezes. O impacto dos dramas é maior quando eles são reais, mas se a representação é má, o efeito dilui-se num marasmo desconexo de realidade. Neste filme, o drama humano ataca o espectador com uma força que vai muito além da questão política, em particular, do acontecimento que origina toda a história.

O interrogatório persecutório aos alunos

Em 1956, cinco anos antes da construção do Muro de Berlim, uma manifestação contra o regime em Budapeste foi violentamente esmagada pelas forças soviéticas. Em Stalinstadt, cidade situada na ex-Alemanha de Leste junto à fronteira com a Polónia, um grupo de estudantes decide fazer dois minutos de silêncio no liceu em homenagem às vítimas da repressão na Hungria.

Um encadeamento de reacções e descobertas vem expor o que de pior (e de melhor) o ser humano tem. Na investigação que se segue –“pidesca” ao nosso jeito; “estalinista” no contexto da realidade retratada – os heróis são anti-heróis e a resignação e revolta alternam, qual reacção em cadeia que se propaga ao sabor da repressão com que o regime aniquila qualquer expressão de individualidade e liberdade.

O que eu julgava não ser verdade revelou-se real (soube-o antes dos créditos finais) o que bastou para me deixar algum tempo pregado à cadeira a digerir o que acabara de ver. Como deve ser horrível viver perseguido por um regime que nos priva da liberdade para afirmar o que temos de mais nosso: nós próprios… se um sistema não nos permite ser quem somos, de que serve viver?

Os acontecimentos moldam as pessoas desta história. Os passados escondem-se e os presentes corrigem-nos, sendo na nova geração que reside a esperança de mudança. Poucos são os inocentes quando a humanidade emerge, e na vida real eles não existem: há pessoas que cometem erros cujas consequências são imprevisíveis; há pessoas que crescem na sinceridade com que desafiam a História das probabilidades, tentando emendar o que foi feito; e há vítimas de um passado que não é delas mas cujos efeitos não conseguem evitar.

Brilhante na realização, na construção da história e nas interpretações.

Dramático na relação do Homem com o seu meio.

Por longas horas não voltei a ganhar sono.

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