Nunca mais voltar

A casota inútil assombra a entrada. Os frutos das árvores morreram no chão. As galinhas e as cabras foram vendidas há demasiado tempo. A casa está fechada, fria, cheia de coisa nenhuma: tristeza, abandono, esquecimento.

Não há barulho. A terra nunca mais será fértil.

Ela aproxima-se e entra.

Os móveis sugerem formas sinistras debaixo dos panos. Dentro das gavetas vazias cheirará sempre a naftalina. Fora, sempre a morte. A família unida de novo em fotografias debotadas, rasgadas: como era o mundo antes de acabar. Toca no vidro da janela da sala. Lá fora, um movimento verde, demasiado rápido. Lá fora, o silêncio de nove mulheres. O papel de parede descasca-se e liberta passos de pessoas que já não existem, sonhos, mágoas. A cozinha faz eco, foi invadida pela ferrugem e pela humidade. Tudo acaba, tudo apodrece. À volta dela, o passado. À volta dela, a pergunta: como foi que isto aconteceu?

Houve uma altura em que os quartos estavam cheios de Sol. A casa era sabão e bolo quente e fumo de lareira, era gargalhadas altas. As cores de viver eram garridas, embrulhavam o coração em calor e euforia. Ela podia deitar-se na terra fresca e fechar os olhos, ver o brilho do universo através das pálpebras fininhas e deixar-se embalar pelo arfar do cão, pelo badalo das cabras, pelos zumbidos de zangões. Sentia-se tão segura da concretização dos sonhos.

Como foi que isto aconteceu?

Fora no primeiro dia de chuva daquele ano. Ela seguia com o dedo as gotas que corriam pela janela. A respiração embaciava o vidro. Da cozinha chegava o conforto das vozes dos pais, dos tios, dos avós, ora murmuradas ora numa explosão de risos. Viu-o de repente. Lá fora, o impermeável verde. Um ligeiro movimento entre a chuva. Limpou o vapor com a mão para ver melhor. Ele passava devagar, a arrastar um grande saco preto de plástico. Parou e olhou para ela.

Só um segundo. Só uma eternidade.

Continuou a arrastar o saco.

“Que fazes, miúda?” a voz inesperada da mãe.

“Nada”, respondeu. “Só a ver a chuva.”

Muitos anos depois, encontraram-nas enterradas.

Ela não contara a ninguém o que tinha visto naquela tarde, era um segredo preso na garganta. Medo, dúvida, indiferença, mil motivos. Mas pensava na terra remexida onde se deitava. Nas facas com que cortavam o peru no Natal. Nas cordas desaparecidas de um baloiço infantil. Nos movimentos do tio naquela tarde. No olhar do tio quando descobriram. Nos pés do tio pendurados. E depois disso, ninguém lá voltara.

Saiu e voltou a respirar. Ligou para o advogado e autorizou que demolissem a casa.

Não há barulho. A terra nunca mais será fértil. Da janela, vários olhos que a vêem a nunca mais voltar.

Share this article
Shareable URL
Prev Post

A Revolução Silenciosa

Next Post

Humanos

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.

Read next

Pausa

Na última semana, uma parte do país parece estar em pausa. Muitos estão expectantes, tentando descortinar se o…

Assim Nasce Uma Estrela

Em tempos em que Hollywood cada vez mais produz filmes de heróis com capas e super-poderes, eu tenho procurado…