A paisagem do raciocínio

A verdade é que pensei mais do que o que fui e fui mais do que o que pensei. Escrevi-o hoje por não saber se o destino me permitirá escrever mais tarde. Só tomei esta ousadia, de me antecipar ao curso da vida, por estar certo de que era coisa para me fazer boa lápide.

Algum dia encomendo-a para ter uma lembrança de mim mesmo, da altura em que por aqui não estarei. Criar memórias daquilo que me será impossibilitado de ver. Não devo tardar a abrir uma cova para dar casa à pedra.

Hei-de ir com as flores nos finados, as que mais gostar, e de me rezar. Talvez com isto mate esta carência por pensar bem de mim mesmo. Diante da minha cova deverei aprendê-la: a arte de me pensar com carinho. A morte beatifica-nos, não serei porventura exceção. Se me ocorrer a sensação da morte que se aproxima, já estagiei do lado de lá, dos vivos que me darão o último adeus. Se nenhum for choroso que preste, no ensaio do meu termo já tudo foi feito.

Vou certo de que não deixarei nada ao encargo de ninguém. Nem flores, nem rezas, nem lápides, nem covas. Quando morrer, já vou cansado de estar morto e certo do dizer que criei em primeiro, antes de todos eles, com medo de não o poder criar. A morte acontece. Apraz-me a sensação de lhe ter roubado a ideia. Já morri.

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