Num destes dias de recolhimento (ainda) voluntário, instalei-me na minha varanda mais soalheira, munida de cadeira e livro. Aí, enquanto o meu cérebro se evadia da pressão dos dias, a minha pele preocupava-se em armazenar toda a luz solar com que produziria a vitamina D, tal qual planta em plena fotossíntese. Sou um ser de sol, a quem atribuo grande parte do meu humor, e busco-o sempre que possível. Enquanto estava nestes preparos, a minha melhor amiga manda-me uma foto do seu cão, o gigante Ruca, 57 kg de Rafeiro Alentejano, devidamente espraiado numa espreguiçadeira que ela possui no terreno, que se estende para além da casa de aldeia em que habita. E aqui dentro alguma coisa se agitou. Eu ali na varanda (o que já não é mau), mas de dimensão limitada, e o canídeo à rédea solta, quando não em banhos de sol em cama de charme. O bichinho verde da inveja invadiu-me, confesso. Obviamente o da inveja boa, não haja disso dúvidas. Mas existe isso da Inveja boa?
Habitualmente, a inveja é tida como um sentimento negativo, relativo àquilo que outro detém ou alcançou, e que cada um de nós, individualmente, gostaria igualmente de usufruir, mas não desfruta. Inveja e ciúme são diferentes, embora andem frequentemente de mãos dadas, porque uma desgraça nunca vem só e desgraça puxa desgraça. Enquanto o ciúme está cimentado na possibilidade de perda de afectos, daqueles que nos são próximos ou pretendemos que sejam, a inveja é a declaração expressa do desejado mas não alcançado. É uma realidade que gostaríamos que se concretizasse na nossa vida, mas que nos entra grotescamente pelos olhos a dentro, materializado na vida alheia.
A inveja surge dotada de uma dualidade interessante, e é a reacção a ela que determina quem somos. Não tenhamos ilusões, todos nós já sentimos inveja de algo ou alguém, mesmo aqueles que batem no peito, como sendo dotados de todas as qualidades de carácter (“há pai que é cego…”), e confundem aquilo que é moralmente correcto com aquilo que dizem ( …apenas dizem…) ser. O sucesso, presa da inveja, pode ser entendido de formas diferenciadas, não necessariamente materiais, mas muitas vezes objectivado numa personalidade com brilho próprio, numa capacidade resiliente, ou no facto de se ser (bem) amado pelos demais. Assim, podemos afundar-nos na amargura, e azedar com o sucesso alheio, chegando ao ridículo ponto de nos vitimizarmos, tanto mais quanto menor é a nossa auto-estima, ou, em alternativa, usar esse sentimento desconfortável para impulsionarmos a nossa vida, o nosso entendimento, e procurar fazer e alcançar aquilo que invejamos no outro, qual trampolim esforçado para a felicidade.
Outro facto que considero curioso, é que há graus diversos de inveja, conforme o afecto que nos liga ou não à pessoa bafejada. Mais facilmente aceitamos a pessoa merecedora do prémio se for do nosso circulo de confiança, ainda que nos cause alguma inquietação, do que se for alguém que não apreciamos, e a quem facilmente minoramos o alcance, obviamente coadjuvado por cunhas, contactos ou amiguinhos (e agora que escrevo isto, oiço estas palavras em vozes concentradas de miasma).
Por outro lado, só invejamos, no sentido de dor, as pessoas que consideramos nossos pares. Não nos passa pela cabeça invejar, de forma sentida, o salário dum jogador de futebol ou aquele namorado hollywoodesco, a não ser de forma ligeiramente referenciada, correntemente dito em tom de brincadeira, porque de facto não pertence à realidade do comum dos mortais.
Podia debruçar-me largamente sobre os tipos de invejosos, mas limito-me ao básico, que estes já têm tempo de antena que cheguem. Há os sarcásticos, sempre prontos a ferrar a sua amargura em pele alheia, os cínicos, criaturas dissimuladas, os agressivos, como os brutos do meu anterior artigo, os pessimistas, incapazes de saborear o prazer alheio, e o minimizam com alertas apocalípticos da desgraça vindoura, os competitivos, sempre prontos a guerrear, e os voyeurs, que aguardam a falha para apontarem o dedo àquele que nem mereceu, pelo que se vê, porque também erra (!!), a benesse anteriormente alcançada. Muito por onde escolher, como se vê. Pessoalmente, dispenso todos.
No entanto, se as opiniões são discutíveis, já a ciência é quase dogmática. Lembram-se da Pirâmide de Maslow, a das necessidades crescentes, partindo da base (fisiológicas), passando pelas de segurança, social, estima e realizações pessoais? As de base são imperativas, e as de topo mais elaboradas, sendo que só se ascende à imediatamente superior, quando a presente se encontra sólida e cumprida. Nesta perspectiva, poder-se-á também compreender o teor da inveja e quão aceitável ou pelo menos compreensível possa ser a sua razão de existir. Princípios básicos de subsistência são facilmente entendíveis, se o invejoso aspira a uma casa condigna, por exemplo, já a promoção a Presidente pode ser vista como mesquinha ou mesmo fútil ( “Didn’t we all must have it all? By Whitney Houston).
Todavia, será a inveja um sentimento arreigado na nossa genética, ou um sentimento adquirido pela humanização?
O Instituto de Yerkes, em Atlanta, realizou experiências para testar essa hipótese. Foi pedida a contribuição de 2 bonos na efectivação de tarefas, findas as quais eram recompensados com pepinos. Na fase seguinte, pela realização da mesma tarefa, a um foi dado uvas, e ao outro o habitual pepino. Mediante esta diferenciação, a colaboração deste último tornou-se menor e até algo hostil. E o que dizer da inveja infantil, da criança que combate o irmão menor, que chegou depois e se alimenta do peito da mãe, e que muitas vezes até se infantiliza para manter o nível de atenção da progenitora? Parece-me que a inveja é intrínseca à biologia, e que terá tido um papel importante na evolução e na garantia de sobrevivência. Inclusivamente, a Bíblia é rica em casos de inveja, sendo o episódio de Caim e Abel o mais revelador.
Jorge Luis Borges, o escritor argentino, dizia que é muito bom ser invejável. De facto, ser invejável, ou de forma menos positiva, invejado, pressupõe que há algo de bom em nós. Se é soberba, ou realidade, alguém externo e isento se manifeste.
O perigo evidente, pelo menos relativamente à sanidade mental, mas também à sociopatia, é quando se chega ao ponto de ter satisfação com a desgraça alheia, sendo apenas um sentimento solitário, ou, mais grave, complementado com actos vis e de escárnio. Quanto a esses, pobres de espírito – os tais que herdarão o céu, porque no inferno já vivem agora – o João Lobo Antunes resolve facilmente a questão:
“Fiquei tranquilo com a inveja há uns anos, quando descobri que a inveja é um sentimento que se auto-castiga. O invejoso deve sofrer horrores, não vive em paz. Nunca mais me preocupei com os invejosos. Os neurocientistas perceberam que o centro do cérebro que está envolvido nesse processo de satisfação pelo desastre que acontece aos outros é o mesmo centro em que está sediado o prazer pelo chocolate, pelo sexo… mais uma vez, a culpa é do nosso cérebro.”
Entrevista Jornal de Negócios, 2012
E contra factos, não há argumentos.