Na véspera de voltar ao escritório, parei para pensar no que teria a fazer na manhã seguinte. Depois de alguns dias com roupa de estar por casa, do pijama ao fato de treino, das pantufas aos ténis, cara lavada e sem adereços, quase que me esquecia de como, em tempos, havia um ritual matinal. Não me lembrava, no último mês e meio, de ter colocado uns brincos, um relógio, conjugar um lenço, perfumar-me ou mesmo maquilhar-me. E de repente, apeteceu-me usar batom. Alinhei a roupa na cadeira e, pus o batom rosa junto aos anéis, não me fosse esquecer, na ausência do hábito. No dia seguinte saí de casa de salto alto e batom. Ninguém pára uma mulher quando sobe no salto e põe batom. Vamos lá, conquistar o dia.
Não pude deixar de me rir um pouco da minha criancice, como se o facto individual de ter ou não batom fizesse de mim mais ou menos mulher, mais ou menos corajosa. Mas o facto, e a ciência comprova, é que cuidarmos de nós, gera uma série de hormonas de bem-estar, como a dopamina e a serotonina, e se isso dava um balanço ao meu sair da toca, não me parece que venha daí mal ao mundo. Claro que podemos achar que é uma futilidade, mas se o facto de nos mimarmos nos faz mais felizes, porque não? Não podemos é chegar ao ponto de achar que, quando se fala de Caixa de Pandora, se fala de um qualquer guarda-jóias, mas isso não é futilidade, é ignorância pura.
Ao sair à rua, constato que o mesmo ocorreu com outras mulheres e homens também, que o tempo dos feios, porcos e maus já la vai. Pode ser uma forma de mudar o foco das preocupações e dar azo não só a sentir-se melhor consigo próprio, capaz de reagir a, mas também facilitar o relacionamento com terceiros, que cara alegre e agradável é sempre bem mais cativante e facilitador. Presumo que o alindar-se seria apenas uma forma de ganhar alguma segurança, sobretudo em tempos de crise, de acontecimentos negativos, medo e crise financeira. Mas não será um contrassenso, que quando há dificuldades económicas as pessoas gastem dinheiro com aparências? Trade-off entre crise e beleza?
Durante a Segunda Guerra Mundial, a Inglaterra alterou a sua produção industrial indo ao encontro das necessidades bélicas, mas a produção de batom nunca parou. Era até incentivado, de forma institucional, o seu uso pelas mulheres, para disfarçar a apreensão, mostrar dinamismo, tendo-se chegado ao ponto de comparar a importância do batom com a do tabaco para os homens. Status e bengalas de fraqueza, mas em bonito, embora com veios de algum sexismo. Historicamente, esta apetência para o incremento de compra dos produtos de beleza, segue-se sempre a épocas de alguma turbulência social ou financeira: Grande Depressão, Crise Asiática de 1997, Pós 11 de Setembro. É inegável a sequência dos factos, pelo que a economia e a indústria da beleza efectuaram estudos em termos de comportamento do consumidor, tendo culminado naquilo que se designa por Lipstick Index ou Efeito Batom. Este índice, corroborado pelo fabricante Estée Lauder, atesta esta correlação entre as crises e a venda deste tipo de produto, mas, como se explica esta ligação?
De facto, não se está a gastar mais. O que acontece é uma transferência de aquisição de bens mais caros, como roupa, malas ou sapatos, por cautela ou mesmo por falta de rendimento, para bens mais acessíveis, que permitam, no entanto, alguma melhoria de ânimo. Mal comparado, são como aquelas aquisições que fazemos em dias de neura, como se uns brincos resolvessem a nossa discussão com o marido ou o chefe. E ainda nos fazem mais bonitas. Assim, com menor culpa, obtemos a satisfação pretendida, que é animar os ânimos. E tudo à velocidade cruzeiro de aplicar um batom. Barato ( há já de boa qualidade e acessíveis), rápido e eficaz.
No caso particular do COVID-19, é possível que esta ligação entre a crise e a compra de batons se comporte de forma diferenciada. De facto, estando recolhidos em casa, com menor exposição pública, a maquilhagem perde importância. Os momentos que poderiam apreciar um batom são pouco mais do que as video conferências, aquelas que fazemos de camisa e calças de pijama. O usos de máscaras de protecção no exterior, muitas vezes obrigatório, também não facilita. Existe, contudo, aqui uma nova transferência, não de produtos caros para mais baratos, mas de produtos de uso social, como o batom, para produtos de embelezamento e tratamento caseiro, como cremes e loções. Mas o efeito compensação, dinâmica psicológica, permanece.
Há ainda outro conceito também que se adequa muito bem a estes tempos que vivemos, que é o Revenge Shopping. Originário na China (mais uma coincidência…) ocorrido na década de 80, contemporâneo com a Revolução Cultural, define o consumo excessivo e descontrolado, após um período em que não foi possível consumir, por razões políticas (no caso inicial) ou quarentena e saúde social (presentemente). Isto para aqueles que têm algum poder de compra, ou têm um rendimento fixo e se viram numa poupança forçada ( sem cinemas, almoços e jantares fora, idas aos centros comerciais, passeios e demais gastos supérfluos), tendo acumulado valores e pretendendo premiar-se pelo tempo em que nada podiam adquirir. Talvez hoje esse efeito não seja também tão intenso, dado que as compras on-line tiveram um intenso incremento, permitindo um consumo pontual, ainda que de menor ordem.
No momento em que escrevo ainda não há restaurantes abertos, apenas algumas pequenas lojas de rua. Confesso que o que me fez mais falta até agora foi passear à beira-rio, à beira-mar, e depois descansar numa qualquer esplanada, ou sair para jantar. Mas no dia em que isso acontecer, faço questão de usar aquele batom vermelho que guardo para ocasiões especiais. Pela economia, pela beleza. E, principalmente, pelo amor.