6 de Setembro de 1997.
Talvez eu devesse contar-vos o que me aconteceu para que me encontre novamente à porta do número três da Rue Duperré. Passaram-se alguns anos desde a primeira vez que, desesperado, decidi deslocar-me a este local. Tentara outros sem sucesso. Encarara este como a última esperança. O cheiro a urina, mais intenso nas ruas secundárias, era-me ainda tão familiar que mesmo de olhos vendados eu saberia onde estava.
Nessa noite em que decidi procurar ajuda pela primeira vez no número três da Rue Duperré, toquei várias vezes à campainha. Ninguém abriu. Na noite seguinte voltei, com a esperança de encontrar paz. Eu, que com quinze anos já amava fantasmas, que, com vinte e cinco, vivia segundo a regra “liberdade e uísque”, sentia-me então a fraquejar.
Eram quatro horas da madrugada quando saí na estação de metro de Pigalle, junto à Boulevard de Clichy. Cruzei a Place Pigalle e entrei na Rue Duperré. O quarteirão normalmente movimentado, os néones dos clubes nocturnos e das sex-shops a darem-lhe vivacidade, o sexo, o álcool, a droga, a vertigem. A roleta-russa da vida.
Parei junto à porta de madeira, toquei para o quarto andar. A voz rouca que se ouviu no intercomunicador disse a senha, eu, a contra-senha. A porta abriu, subi cento e cinco degraus. Cheguei esbaforido. Um homem corpulento, talvez de leste, todo vestido de negro, proferiu qualquer coisa que não entendi, enquanto me indicava a sala. Quis agradecer, mas estava a ponto de não conseguir falar. As figuras expostas na parede olhavam-me, algumas delas pareciam rir-se de mim. A sala era sombria e gelada. Ansioso, fui tamborilando os dedos na mesa despida, onde apenas um candeeiro velho e carregado de pó me fazia companhia.
O silêncio era desconfortável. Puxei um cigarro mas voltei a guardá-lo. Pensei levantar-me e ir-me embora. Quase vinte minutos depois, o som de passos no corredor denunciava que alguém se dirigia para a minha sala. A aparência era assustadora. Uma mulher de uns setenta anos toda vestida de roxo, com um cabelo negro muito comprido, os lábios sumidos e um buraco tão grande entre os dentes da frente que devia lá caber a Torre Eiffel. Sentou-se à minha frente e sem aviso puxou-me os braços e agarrou-me nas mãos, virando as palmas para cima. Durante uns segundos olhou-as e, sempre em silêncio, esfregou-as com os seus dedos, fez um esgar que me deixou ainda mais perturbado.
De entre todas as que consultei, esta era a que tinha as mãos mais suaves, mas era também a mais feia. Sem que me apercebesse, fixei-me nas suas sobrancelhas demasiado grossas, que desciam e subiam como se tivessem vida própria, e não me lembro das suas primeiras palavras. A conversa durou mais de uma hora. A velha das sobrancelhas grossas quis saber um pouco mais sobre a minha vida, o que me levara ali – algo estranho para quem se apresenta como possuidora de visão sobrenatural das coisas passadas, presentes e futuras, pensei. Seria ela capaz de me aliviar do sofrimento ou seria mais uma charlatã como tantas outras? Teria o meu problema uma solução?
A medo, contei-lhe que fazia sexo com uma morta desde a adolescência. Franziu as sobrancelhas grossas. Para agravar mais as coisas, esclareci que a morta era a irmã gémea da minha mãe. Abriu os olhos de repente e fixou-me, aguardando mais pormenores. Expliquei-lhe que todas as noites, assim que me deitava, a gémea aparecia no tecto do quarto, despia a camisa de dormir enquanto descia, deitava-se comigo e fazíamos amor até que eu adormecesse. Perguntou-me se tinha orgasmos. A questão pareceu-me totalmente desnecessária.
Clara e Gema. As gémeas. Clara, a minha mãe, Gema, a tia que nunca conheci, mas a amante, a única mulher que amei verdadeiramente.
Eu sentia-me destruído. Amava a gémea, nunca conseguira sentir interesse por nenhuma mulher viva, mas esta situação estava a levar-me ao desespero. Apenas necessitava de uma solução: ou matava definitivamente a gémea morta, ou, e esta era a principal razão que me levara ali, trazia a gémea morta de volta ao mundo dos vivos. Perguntei-lhe se me podia ajudar, mas a velha não esboçou qualquer resposta, explicando-me apenas que os mortos aparecem quando mais precisamos.
Enquanto falava, espalhou algumas cartas em cima da mesa que eu não percebi de onde saíram. De repente, virou três delas, parou de falar, as sobrancelhas remexeram-se. Fiquei inquieto. Ao longo de vários segundos, que mais pareceram largos minutos, olhei para as cartas e olhei para ela. Para as cartas e para ela. Tentei perscrutar as suas expressões, mas nada. Parecia estar numa espécie de transe. Quando finalmente despertou, disse-me que aquela, o “Ás de espadas”, indicava que eu iria perceber as coisas com mais clareza, que a minha mente iria estar mais preparada e que só me faltaria a coragem para agir. Segundo ela, a carta sugeria novos começos ou um período de total clareza mental. Lembre-se de que com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades, advertiu no final. Fiquei ainda mais confuso.
Durante seis meses, frequentei aquele local, trabalhei a alma com a velha das sobrancelhas grossas. Até que tudo acalmou e a gémea foi deixando de aparecer à noite no meu quarto. Comecei a sair todas as noites até de madrugada, a ter desejo por mulheres de carne e osso, frequentei bordéis, bebi uísque até perder a consciência. Foram tempos de mudança com a alma renovada, a coragem para agir de que a velha das sobrancelhas grossas me falara.
Durante uma longa época, pensei que tudo estaria resolvido, que me teria libertado da gémea, esse pedaço de amor com aspecto de incesto, que teria, finalmente, ganhado clareza mental. O tempo passado em tantos outros tempos. Estava fatalmente enganado.
Foi pouco tempo depois de a minha mãe falecer, a 28 de Agosto de 1997. Eram onze horas da noite. Estava calor, a cabeça latejava-me e eu não conseguia adormecer. Foi então que as vi, as duas gémeas, Clara e Gema, no tecto, a despirem-se enquanto desciam. Senti uma erecção. Não recordo com exactidão o que aconteceu a seguir.