A fila para a caixa do supermercado ia longa, prolongando-se por entre o corredor dos refrigerados.
Na espera inevitável, passando os olhos distraidamente pelas pessoas e pelo espaço, não pude deixar de reparar na organização irrepreensível do carro à minha frente. Longe da impressão atabalhoada de alguns outros carros, sugerindo a palavra caos, aquele estava dividido por áreas nitidamente separadas: os congelados, os frios, os secos, os delicados, produtos de higiene doméstica, pessoal, livros e revistas. Preconizo até quase algo de científico e logístico nessa elaboração, muito longe do empírico acomodar de compras ao espaço.
Foi, sem surpresa, que vi que o homem transpôs para o tapete da caixa a mesma metodologia. Estrategicamente, ia ensacando as compras no saco respectivo, mantendo a divisão por categorias. Numa rapidez coordenada com a moça da caixa, o objecto passado no leitor era de imediato guardado, sem filas nem esperas. No fim, pagou com um cartão que retirou duma carteira limpa e igualmente arrumada. Pergunto-me, sabendo de antemão que sim, se o processo de arrumação no carro e posteriormente nos locais respectivos em casa ocorrerá com a mesma exatidão.
Acho sempre engraçado reparar nestas coisas, nestes hábitos de cada um. No entanto, não consigo deixar de pensar até que ponto é que isto é racionalidade, na medida em que facilita a arrumação final e agrega produtos de função similar no mesmo saco, que serão guardados no mesmo local, ou se é já um excesso de preciosismo, muitas vezes a tender para o obsessivo-compulsivo.
Já conheci pessoas que, provavelmente como o homem em questão, chegando a casa, guardam as compras com critérios que vão muito além do razoável. Por exemplo, os iogurtes. Para mim faz sentido que os mesmos sejam organizados por tipologias ( líquidos, sólidos, com pedaços) e dentro de cada categoria com prazos de validade crescentes. Parece-me simples e funcional e reconheço que já tem algum tema pensado. Mas há quem tenha níveis de exigência superior e insista em virar a mesma face do iogurte, a que tem o pêssego, por exemplo, para que quando se abrir a porta do frigorífico se vejam as faces iguais, e não uma com pêssegos e outra com letras ou demais variações. O mesmo acontece, naturalmente, com as latas de salsichas, arroz, enfim, em tudo aquilo que possa perturbar a noção de estética. E já os Roquivários cantavam, nos idos anos 80: “Cristina, não vais levar a mal, mas beleza é fundamental”.
Conheci outras pessoas com hábitos igualmente caricatos. Um deles, dispondo de uma caixa de bombons, decidiu que os comeria em simetria, retirando cada um por sua vez, mas em qualquer altura que se observasse a caixa, havia de facto um eixo central onde se espelhava uma imagem exactamente igual. Outro, dispensava a senhora da limpeza de limpar o seu próprio escritório, porque, obviamente, os seus pertences ficavam dispostos de forma milimetricamente diferente do que tinha deixado, o que lhe causava grande irritação, correndo a repor as coisas nos seus devidos lugares. Outro ainda guardava as escovas de dentes usadas para proceder à limpeza meticulosa das saídas de ar do carro, passando os fios por entre as grelhas de forma detalhada e com a garantia de não ter sobrado milímetro. Ou alguém que lavava o chão da cozinha duas vezes por dia, precisando ou não.
São estas pequenas manias, por norma sem qualquer efeito maior do que o riso, que caracterizam as pessoas. Poderá ser a apreciação pela organização, hábitos que vivem inculcados na forma de ser e nos dão segurança, e desde que não sejam perturbadores da vida própria ou de terceiros, são apenas cómicos e eventual tema de conversa.
Penso que passará a ser perturbador quando se vive na ansiedade de não efectuar as coisas como pretendido, ou se assistem dúvidas como ter desligado o gás, fechado portas, acionado o travão de mão ou qualquer outra tarefa rotineira que por norma se efectuam em automático, e depois faz voltar atrás, mais do que uma vez até, para verificação.
De resto, como diz o ditado popular, “de médico e de louco, todos temos um pouco”.