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O Salto Mais Alto

Foi num sábado, 15 de Maio de 2015, que partimos os quatro para o meio do Alentejo, o meio de nenhures, para o baptismo em queda livre. 4.200 metros e longos dias sem pregar olho enquanto, ao adormecer, projectava os cenários catastróficos dos derrotados E se aquela merda não abre?, E se aquela merda não abre e eu sobrevivo? além de questionar até ao infinito dos fractais mais recônditos da minha cobardia, Porquê? Por que razão tinha eu tomado uma decisão que até esse momento me havia trazido tamanho desassossego? Eu, que tenho vertigens, vou-me atirar dos confins do caralho mais velho (no caso, mais alto), para provar o quê? Que sou homem? Que sou capaz de superar o que quer que seja? Tretas. Mas ainda hoje não sei porque é que paguei cento e tal euros para entrar num chaço que parecia saído de uma pista de aterragem em terra batida junto a uma roça no meio do mato, para me lançar de uma altitude de onde já era possível vermos a curvatura da Terra (talvez estivesse sugestionado e acreditasse ver o que não via), amarrado a um gajo que eu não conhecia de lado nenhum e fazia fé, com figas apertadas nos dedos das mãos e dos pés, que ele tivesse amor à vida e não estivesse deprimido de modo a aproveitar o meu salto – logo o meu! – para acabar com a sua existência miserável.

A Lu, a Patrícia e o Luis foram os companheiros desta loucura: partimos no meu Hyundai, novinho na altura, rumo a Figueira dos Cavaleiros, e eu pouco falava, além de não ter dormido nada. Não recordo bem o estado de espirito que reinava no bólide (ao volante, levei grande parte da viagem de ida a fazer contas à vida, pensar na herança que deixaria às minhas irmãs, quem iria sentir a minha falta, etc… aquelas coisas que nos visitam quando a emoção descola da razão e o medo converge para o delírio), mas julgo que elas iam animadas e o Luis um pouco mais calado. Eu disfarçava.

Chegados lá, mal conseguia controlar as tremuras, com um formigueiro a percorrer-me o corpo, da ponta dos pés à ponta dos cabelos, passando por outras pontas, umas comuns a toda a humanidade, outra, propriedade de metade, pois até nessa o formigueiro anestesiou a coragem, e quando nos indicaram que deveríamos ir dois a dois, ofereci-me logo, não por heroísmo, mas para acabar com aquilo de uma vez (Deus me livre de ficar a ver os outros saltar como formigas lá, da outra ponta do infinito). Encenação, treino, movimentos, onde colocar as mãos, os pés, tudo a rir, o saltador principal e o Carneiro, com quem eu iria, Benfiquista como eu (o Benfica sagrar-se-ia campeão nesse fim-de-semana ou no seguinte), a gozarem, e vestimos o fato, e entrámos para o avião de lata, e o hélice a tossir antes de rodar, os cinco (o piloto, a Lu e o seu instrutor, eu e o Carneiro) a afastarmo-nos de terra firme, rumo aos céus, nós junto à porta (iria ser o primeiro a saltar), o Carneiro atrás de mim a amarrar-se com mil e uma medidas de segurança que ele garantia serem fiáveis e que a mim pareciam peças de lego que se esboroariam à primeira rajada, fotos apalhaçadas, uns fixes e uns hang loose patéticos para a câmara com um sorriso amarelo a disfarçar o frio na barriga e o cérebro a desfalecer, a desligar da realidade que, lá em cima, não era mais a que eu conhecia.

Atingimos a altitude e vejo a porta aberta. Torrentes de vento e ruído industrial entram pela cabine da carripana e o Carneiro arrasta o cu no chão amarrado às minhas costas, e vejo-me com os pés lá fora, primeiro no vazio antes de os conseguir estabilizar no degrau que me parecia o pedal de uma BMX enferrujada com o ranho dos meus doze anos, e ele a puxar por mim, deixando-me a decisão do momento, até que me lancei, no embalo do seu impulso.

O que se passou a seguir é para mim inexplicável num primeiro momento, ainda que, aprofundando um pouco, faça sentido. Adorei desde o primeiro instante, a velocidade crescente com que o meu corpo ia acelerando sobre um vazio pejado de ar, cortando o vento e sentindo como tudo era tão pequeno, eu inclusive, a rasgar o espaço que se interpunha entre mim e a crosta (àquela altitude era crosta e não solo), ao mesmo tempo que, paradoxalmente ou não, me sentia grande, por sermos a única perspectiva que eu tinha em tamanho real naquele ponto da atmosfera, e por ter superado qualquer coisa e acabara por desfrutar, realmente desfrutar, até que tudo se dissolveu em silêncio.

Subimos vinte, trinta andares no ar (na verdade não subimos nada – foi tudo um jogo entre o líquido do ouvido e a informação transmitida ao cérebro, que nos leva a crer termos subido) e o paraquedas guiou-nos, levitando num berço de quietude. Apreciei a paisagem que, ainda que continuasse mínima, se aproximava de mim, como o solo, as casas e os campos, e o Carneiro sempre a filmar com a GoPro estendida na ponta do braço, deixando-me conduzir aquele balão de ar frio – puxa de um lado, puxa do outro, e curvávamos inclinados, mais ou menos paralelos ao chão que já se preparava para nos receber, esticar as pernas para a frente e aterrar em segurança, rabo no chão e uma experiência a repetir, juntamente com o alívio a libertar quilos, toneladas de stress ansioso que carreguei para aquele ferro-velho voador, e o Luís a felicitar-me como se eu tivesse feito muito ou pouco, e mais fotos e vídeos.

A Patrícia e o Luís saltaram depois e todos aterrámos sem partir uma unha. Fomos almoçar com a alegria no estômago preparada para receber a carne de porco à Alentejana, responder às mensagens que perguntavam como tinha sido, (E se tinha sido bom!). Nessa noite devo ter celebrado o aniversário, embora não me recorde onde nem com quem. Lembro-me sim do salto mais alto da minha vida.

Perdi o vídeo: necessitei de espaço no Google drive e na altura não me lembrei do disco externo. Preferi continuar a receber os mails. Escolhas estúpidas que fazemos na vida.

PS: Tenho uma teoria feita de justificações para não ter tido vertigens (o que tive foi medo). A minha segurança estava entregue a quem sabia, não andando eu à solta na borda de um penhasco qualquer; por outro lado, no meio do nada, não há referências, nenhum precipício, parede, rio ou estrada sem rails à beira de um abismo; não havia nada com que pudesse comparar a altura a que estava, pois o solo era uma entidade distante, sem conceito – só havia ar. Não sei se são razões suficientes, mas que tenho vertigens é um facto, e que naquela aventura elas nem me tocaram, é outro.

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