O Outro em terras de Alguém

“Está na luta, no corre-corre, no dia-a-dia/marmita é fria, mas se precisa ir trabalhar (…) trabalhador, trabalhador “estrangeiro” / dentista, frentista, polícia, bombeiro (…) tem ‘gari’ por aí formado engenheiro / e sem dinheiro “trabalhador estrangeiro” vai dar um jeito”.

Parafraseando a música do cantor e compositor brasileiro, Seu Jorge que eu começo esse texto sobre imigrar. A tal página em branco são aviões de papel que nos mostram alternativas para zerar as contas, começar de novo em outro lugar. Ser migrante é como o começo de um namoro, a escolha do destino, a arrumação da mala, a quantidade de grana, o receio quando a língua difere do seu original? No meu caso, a minha não difere, mas, é um cavalo de Troia que chega como presente e nos põe em uma cilada.

Porque sou extremamente criticada pelo meu sotaque, minha gramática, minha construção frásica que destoa. Eu me torno incompreensível. Ser imigrante é ser incompreendido por duas vezes. Aqueles que você deixa não entendem a sua escolha e as dificuldades que possa vir enfrentar, e então surge a frase típica, “mas, você estará sozinho sem amigos e sem família” e para aqueles que nos recebem a princípio vem o exotismo, depois a desconfiança. Você é o outro que ninguém sabe porque e para o que veio. Seus erros tornam-se crateras lunares, seus acertos algo merecendo um elogio que não é dado de modo genuíno pois já não é mais do lugar de onde migrou e também não é do lugar onde se encontra.

Uma mala sempre pronta para se mandar.

Porém, como disse, imigrar é o início de um relacionamento que tem altos e baixos, que pode ser saudável ou tóxico. Sei que todos que fazem esse movimento são corajosos, porque tudo é duplamente mais complicado, tudo é questionável. Para alguns idiotas é apenas um marginalizado que pode ser tratado da forma que melhor apetece ao freguês. E essa forma nem sempre é digna e se agrava quando a se soma o facto de ser mulher.

Minha experiência é dolorosa muito mais que divertida, mas a parte divertida vale a pena, vale a pena encontrar as pessoas e conhecer as diferenças e semelhanças que nos aproximam e nos afastam. Na minha vida de “trabalhadora estrangeira”, tenho a oportunidade de conviver com muitas personalidades, já ganhei um pouco de rigidez quando sofro xenofobia, e já percebo quando há gentileza. O que ainda me dói é ter essa vontade nómada de sair, às vezes penso que não escolhi o avião de papel correto, escolhi as pessoas corretas para constituir uma família, contudo, acho que aqui ainda não é o destino final. Não sei o que são as sociedades europeias para quem vem dos trópicos e das Áfricas. Porque isso ainda nos faz criar tags para classificar as pessoas ao nosso entorno. E essas tags não nos abonam, elas nos discriminam.

Na minha cabeça esse texto não teria melancolia, ou aquela vontade de ir para um canto escuro e chorar, meu humor estava tão solar como o dia lá fora. Só que para um imigrante, basta algo sair do lugar e de repente pode esbarrar com o pior dia dos outros, o que não significa xenofobia, significa que é o pior dia da outra pessoa que esbarrou no seu melhor dia. E você escrever Antônio no lugar de António é um pecado capital. Você conspurca a sociedade e escandaliza o entorno com o seu português.

Porém, quando você é o estrangeiro alguns encontros que passariam ao lado reverberam e machucam, mas há milhões de outros que valem todas as constelações do céu. Ganhamos mundo, ao perdermos o nosso quintal, nossos também preconceitos e restrições. Atiramo-nos ao abismo e descobrimos a poesia que Ícaro via no céu com a tecnologia de Da Vinci.

Também perdemos o discernimento do quotidiano e corriqueiro tornando tudo mais imenso. A única coisa que não se modifica é a vontade de ir, de começar tudo de novo, já que esse relacionamento está sendo tóxico podemos tacar pela janela um avião de papel e começar de novo, em um lugar diferente, e enfrentaremos tudo de novo. E vale a pena! O que não vale é retornar à origem, pois perdemos a vontade de retroceder, o caminho é sempre em frente e o mais longe possível do anterior.

Estar em Portugal e assumir minha imigração é ser recepcionista de uma clínica psiquiátrica onde o paciente e o médico são todos Eu. Há dias em que a medicação funciona, há dias em que a camisa de força é o recurso mais certo a evocar, mas os melhores dias, talvez sejam aqueles em que me fazer de louca dá certo.

Viva a loucura de viver esse relacionamento montanha-russa com Portugal, viva esse amor louco de estar e ser nortenha.

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