Já vos disse, com certeza, que gosto muito de velhos. Aprecio de sobremaneira os enérgicos, com um espírito que muitas vezes vive a uma velocidade superior ao corpo. Aprecio os criativos, os bem-dispostos, os que não se dão por acabados e acham que ainda podem aprender alguma coisa, sobretudo com as gerações mais novas. Gosto desse género de indivíduos (palavra que muito usam).
E agora que me sento aqui para vos falar desta senhora, olho para a palavra “velha” e não se adequa. Não porque seja ofensiva, até porque muitas vezes, dependendo do tom em que é dita, é um carinho. Também não é porque a noção de velho evolui em coordenação com a nossa idade. De facto, quanto mais velhos somos, mais longínqua se encontra a nossa noção de velhice. Nesta fase da minha vida, 47 anos, e dado a quantidade de velhotes conhecidos que raiam os 90, considero que a velhice é depois dos 80, e ainda assim dependente de vários factores, essencialmente a personalidade. E ela ainda não tem sequer 80 e nem aparenta a idade que efectivamente tem.
Encontro-a casualmente. Sempre muito bem arranjada. Roupa azul médio, pontuada de preto aqui e além. Brincos a condizer. Unhas arranjadas. Cabelo pintado de um castanho-claro. Fala-me dos filhos, a quem gostaria de modificar a vida, que eles não andam a fazer as escolhas certas. E dos netos, que adora e são perfeitos. Vê-se que prolonga a conversa além do necessário e sobretudo muito além da intimidade que não temos. Evidente a necessidade de falar, por isso deixo-a libertar as palavras por uns minutos, não muitos, que a minha vida, como a maioria das pessoas, é passada a correr entre tarefas e horários.
Acho-lhe graça, e acabo por elogiar a forma como lida com a vida, onde se inclui uma década de viuvez. Toma todos os dias o pequeno-almoço no mesmo local, embora a companhia possa ser diferente a cada dia, consoante a disponibilidade das amigas contemporâneas. Um pouco como aquela anedota de que me lembrei agora: “ ao sábado temos sexo cá em casa, quer o menino esteja, quer não esteja”. Vai sozinha se preciso for. Todos os dias. De conversa fácil, olhar amendoado e convidativo, temas e companhias não lhe faltam.
Elogio-lhe o cuidado com que se apresenta. Estilo quase moderno, embora sóbrio. Diz-me, com um ar orgulhoso, que faz por isso, que é muito vaidosa. Aponta-me, com ar de desagrado, os sapatos confortáveis que usa, presumo que ortopédicos, dizendo que os detesta, mas uma artrose fê-la ceder. De seguida conta-me que já não vê muito bem, mas que não gosta de se ver de óculos, como não gostou a vida toda, o que resultou num aumento da miopia. Porque é muito vaidosa, repete.
Também por isso, conta-me que descobriu há pouco uma forma de pintar no rosto as sobrancelhas que quase não tem, devido a modas anteriores de espessura fina. E que toda a gente lhe elogia as pestanas, com uma ponta de máscara.
Diz-me que no dia seguinte vai estar toda bonita. Di-lo com um sorriso no rosto. Vai participar num almoço onde se juntarão uma centena de pessoas, para comemorar algo que não fixei. Está toda entusiasmada com a saída. Concordo, faz muito bem em sair. Responde-me, entristecendo um pouco o rosto, que é tudo o que lhe resta. Não quer sobrecarregar os filhos com a sua presença excessiva, que têm também as suas vidas, as tais em que fizeram escolhas erradas. Por isso mantêm-se ocupada.
Às tantas, diz-me ela, com a marotice no olhar: sabe, ainda gostava de ter um companheiro. Quem eu quero não me quer, que estou engelhada. O meu marido faleceu cedo de mais. Faríamos agora 50 anos de casados. Antes dele, tive um namorado, mas foram só uns beijinhos, ficou por ali. Mas olhe, se me aparecesse agora um homem jeitoso… mas um MAIS NOVO!!! que não quero cá homens a mijar nas botas….
Fui à minha vida, a rir-me sozinha.
Um homem, mais novo, pois claro, que não mije nas botas.
Há que manter a expectativa e a exigência sempre em altas.
Ainda que resulte em solidão.