O lugar de todas as nossas raízes

Todos temos raízes de berço em determinada terra, uns pelo nascimento e, outros, pela vivência e partilha de experiências numa determinada localidade.

O Alentejo onde ainda tenho alguma família dispersa, muitas memórias e uma vivência muito próxima pela ligação que partilho de coração, embora a minha terra seja Lisboa, é aqui que encontro a paz e tranquilidade num ecossistema tão raro e belo. Leva-me muitas das vezes a pensar, que nesta parte do nosso Portugal encantador, o homem e a natureza conectam-se para algo tão singular e raro para dar lugar a uma terra que convida a passeios e a vivências onde o tempo passa devagar e quase tudo, mas tudo respira liberdade e tranquilidade.

É neste ambiente de um Alentejo rural, convidativo a fazermos uma incursão quase imersiva sobre os pontos mais recônditos desta terra, que vos venho falar hoje do livro “O Lugar das Árvores Tristes” de Lénia Rufino.

Este é o romance de estreia desta autora portuguesa, que nos transporta para um Alentejo de uma história que se desenrola em 1992, com menções às décadas de 1960 e 1970 (Estado Novo). Todo o cenário da trama principal passa-se numa aldeia portuguesa de um Alentejo rural e que se apresenta como uma interessante reflexão das personagens pelo passado, revelação de memórias e surpresas de segredos que emergem das páginas deste livro.
Lénia Rufino, na sua primeira incursão no género literário romance, consegue criar uma atmosfera envolvente com a descrição cativante das personagens femininas, mulheres que trazem uma profundidade interessante à história com uma narrativa que faz alusão às “árvores-tristes” do Alentejo rural, “castigado” por uma forte seca e que guardam igualmente segredos ocultos.

É precisamente esta narrativa que não é linear, uma vez que, alterna entre diferentes períodos, que tornam esta obra singular com forte introspeção da autora na sua forma gradual como vai revelando os segredos na história num estilo muito fluído, que tem a nobre capacidade de conseguir envolver o leitor. A partir do momento que começamos a desvendar os segredos desta história, ficamos mais atraídos para compreender melhor as motivações e angústias das personagens.

Isabel e Lurdes, são as personagens centrais da história e são elas que vão guiar o leitor para compreender a vivência de ambas num lugarejo de um Alentejo que é duro, onde a vida é penosa na agricultura, trabalha-se de sol a sol, sob condições muito difíceis com os animais e quase não há tempo para o chamado “tempo de família”. É na taberna de esquina que os homens se juntam antes do jantar, em torno de um balcão, entre garrafas de cervejas espalhadas e se faz contas à vida e à jorna que recebem. Os funerais e as “reuniões” no cemitério, que para além de serem a homenagem sentida para quem parte, são também o momento de vida social para comentários indevidos e apreciações desnecessárias num Alentejo quase esquecido.

“Há, nos funerais, um resquício de maldade que é impossível conter. Ali não era diferente. O cinismo chegava sempre a horas a estes eventos” – In “O Lugar das Árvores Tristes”.

Isabel é a protagonista que procura compreender a sua própria identidade ao desvendar os segredos da sua mãe Lurdes. A relação mantida entre mãe e filha é a força central desta história com eventos passados que vão influenciar o presente, num Alentejo onde as árvores-tristes são meramente simbólicas para atrair a atenção do leitor para uma natureza que se compadece também pelo destino e contrariedades das personagens principais.

Para além das relações familiares que afetam a identidade e escolhas das personagens, assistimos a uma sociedade que, retratada de forma ficcionada, revela um Portugal subjugado aos brandos costumes da época e aos pilares da religião católica e do poder do dinheiro que condiciona diretamente tantas vidas.

Esta obra, que considero dotada de uma escrita rica de descrições, de vivências únicas das personagens, que ficcionadas são o espelho de um Portugal de muitas assimetrias, vem abordar como reflexão, os comportamentos, os preconceitos impostos pela sociedade e que podem moldar invariavelmente o rumo de qualquer vida.

A autora, Lénia Rufino, usa uma linguagem muito acessível, fluida, usando, contudo, as expressões típicas do Alentejo sem serem difíceis de perceção e que tornam a narrativa mais profunda e próxima da realidade.

Uma narrativa inspiradora, que prende o leitor desde o início no “mergulhar” na história ficcionada de um Portugal de raízes muito religiosas e que revela, o quanto essas raízes ainda são fortes para moldar pensamentos e posturas da nossa sociedade.

As personagens Isabel e Lurdes são o espelho de muitas mulheres com raízes num profundo Alentejo onde as oportunidades e sucesso apenas acontecem para alguns e as histórias familiares são os “braços” das chamadas árvores-tristes e o lugar de todas as nossas raízes.

Uma leitura convidativa para um tempo de lazer, de férias ou apenas de reflexão.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico

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