O papel dos historiadores

A biblioteca do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Grã-Bretanha (Foreign & Commonwealth Office) foi no passado ano restaurada. O edifício, localizado perto de Whitehall, uma das principais avenidas da City of Westminter, no centro de Londres, foi construído entre 1861 e 1868, desenhado pelo arquitecto George Gilbert Scott, sob as críticas atentas do então Primeiro-ministro Lord Palmeston. A reabertura da biblioteca após o seu restauro – que incluiu o reparação de uma anaconda embalsamada, de seu nome Albert, que se encontrava pendurada num dos tectos da biblioteca – serviu de mote para uma visita guiada pelo próprio Ministro dos Negócios Estrangeiros, William Hague e alguns dos seus colaboradores, nomeadamente historiadores.

Patrick Salmon é um deles. Segundo ele, muitos dos mapas que aí se encontram foram desenhados ali, naquele local, sem terem tido qualquer consideração com a geografia, cultura, religião, ou credo das regiões a que diziam respeito. Puras linhas rectas em mapas. Dá o exemplo do Iraque e da Síria, cuja instabilidade actual se deve às decisões tomadas pelas actividades diplomáticas do Ministério, após a queda do Império Otomano, no final da Primeira Guerra Mundial. De facto, esses foram dois dos territórios que ficaram sob domínio das forças Britânicas, em 1919, em sequência do Armistício de Mudros. Dá também o exemplo do caso da linha de fronteira que separa a Índia Britânica do Afeganistão, desenhada há 118 anos por Sir Mortimer Durand, diplomata na Índia inglesa, que ali permanece, constituindo a fronteira do Paquistão. Questões como estas são desconhecidas do grande público e alterar essa realidade é um dos objectivos de William Hague. No seu entender, a História como disciplina tem tido um papel menor na formulação da política externa da Grã-Bretanha, durante os últimos anos, tendência essa que quer contrariar. É, por isso, que reuniu alguns colaboradores, em particular historiadores, instalando-os na biblioteca recentemente renovada. “Assim como damos atenção a economistas e a especialistas com conhecimentos específicos sobre determinados países, devemos fazer o mesmo no que diz respeito aos historiadores. Estes são um recurso evidente, que não foram devidamente apreciados na administração passada. Tem sido de facto importante para todo o Ministério usar o saber e também lembrar a importância da compreensão da História.”

William Hague, actual secretário do Foreign & Commonwealth Office
William Hague, actual secretário do Foreign & Commonwealth Office

Além dos livros que compõem a biblioteca, há também o arquivo do Ministério, a história da própria casa, que abarca assuntos tão diversos como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), como o ouro nazi, composto por mais de 750 unidades, entre livros e caixas. Salmon, antigo professor de História na Universidade de Newcastle, considera que, sobretudo a partir da guerra no Iraque, a classe política está mais disposta a ter em conta toda esta documentação, mais do que na sequência dos atentados de 11 de Setembro. Até então, a História não tinha sido tomada em consideração, mas é uma atitude que parece finalmente estar a mudar.

William Hague, autor de algumas biografias de políticos britânicos de finais do século XVIII e início do século XIX, como William Pitt the Younger and William Wilberforce, assume-se como pragmático. Defende que o governo no seu todo, ou o ministério dos Negócios Estrangeiros não pode entender o mundo a partir de princípios abstractos, uma vez que, no seu entender, as sociedades e as pessoas que a constituem comportam-se de acordo com a sua cultura e a sua história. Daí considerar que as opções mais sábias se fazem tendo em consideração um amplo contexto histórico, uma vez que se pode aprender com o passado. E exemplifica, como os historiadores do Ministério têm comparado as revoluções de 1848 na Europa, que tiveram como pano de fundo a emergência dos nacionalismos, com o que actualmente ocorre no mundo Árabe. Muitos dos partidos cristãos tiveram, então, de se secularizar para lidar com as transformações ocorridas no seio da política internacional e pode-se fazer um paralelo entre isso e alguns dos partidos islâmicos no Médio Oriente. Obviamente que esses paralelos não podem ser perfeitos, uma vez que as diferenças entre as sociedades árabes são maiores do que as sociedades europeias, havendo feitos diferentes em cada país.

No entanto, não se trata de fazer futurismo. Jack Straw, ministro dos Negócios estrangeiros em 2002, observava, nessa altura, do que muitas das questões com que tinha de lidar era consequência do passado colonial inglês. Por exemplo, no caso da Síria, a história permite entender como os diferentes grupos étnicos se sentem relativamente uns aos outros, como lidaram e se cooperaram entre si no passado.

Litografia colorida representando o edifício do Ministério dos Negócios Estrangeiros inglês. Século XIX, © Government Art Collection
Litografia colorida representando o edifício do Ministério dos Negócios Estrangeiros inglês.
Século XIX, © Government Art Collection

Nos últimos tempos, a equipa constituída por três historiadores e três assistentes redigiram documentação sobre a pirataria otomana desde o século XVI até ao século XIX, procurando estabelecer paralelos com a pirataria britânica, no que toca à política britânica no Iémen, durante a década de sessenta do século passado e as intervenções russas e britânicas no Afeganistão.

As tarefas dos historiadores do Foreign Office não se ficam, no entanto, por aqui. Para além de fornecerem documentação sobre questões históricas para ministros, altos funcionários e embaixadas, organizam palestras e seminários, publicam artigos historiográficos, ou documentação de arquivo relacionados com o ministério dos negócios estrangeiros, de forma a melhorar a compreensão da política externa britânica, sobretudo, a partir do pós-guerra, e a gestão do programa de História interna do próprio Ministério.

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