Um dia, a velha costureira esqueceu-se de morrer. Ou talvez tivesse sido a Morte a esquecer-se daquela costureira discreta que vivia num prédio abandonado da baixa lisboeta. O que é certo é que, depois desse dia, depois de se ter esquecido de morrer, continuou a viver com o coração a bater ao ritmo do pedal da máquina de costura. Às vezes lentamente, definhando; outras vezes, freneticamente. Como se estivesse à espera. Como uma mãe aguardando que o filho perdido voltasse a casa. Pensando bem, talvez ela tivesse feito de propósito para viver tantos anos, talvez se tivesse escondido da Vida e da Morte só para continuar a existir.
No dia em que vi a velha costureira pela primeira vez, chovia muito. Eu precisava de um refúgio. Encostei-me a uma porta enorme, de madeira maciça, e caí para trás. Magoei um cotovelo no chão de pedra, e gritei uma asneira qualquer que o eco repetiu. Olhei à volta: um prédio velho e escuro, um chão de azulejo branco e azul, umas escadas de madeira ao fundo. Senti frio, apesar do tempo abafado pela chuva que estava lá fora. Ao fundo, um som ténue e familiar que me parecia uma máquina de costura. Não fechei a porta, para conseguir ver, e a curiosidade desafiou-me a subir as escadas.
O som parou quando cheguei à porta que parecia ser a sua origem.
“Pode entrar” ouvi chamarem-me. E entrei.
Uma mulher pequena e velha estava no centro da sala. Guardava uma aura melancólica, de esquecimento e saudades, de neutralidade. A sala onde trabalhava tinha pouca luz natural e ela parecia camuflada com a sua roupa escura, onde só se destacava uma trança branca que lhe descia pelo peito. Tive a sensação que ela me observou durante uns segundos, curiosa e assombrada, por detrás de uns óculos que lhe encolhiam os olhos, e de seguida voltou ao seu trabalho.
“Qual é o seu tempo?” perguntou-me.
Não entendi. Observei o quarto escuro, o ambiente pesado que quase não me deixava respirar. Os meus movimentos pareciam mais longos, vagarosos, e tive uma sensação estranha como se estivesse num sonho em câmara lenta, num Verão abafado numa terrinha qualquer perdida no interior. Um relógio na parede dizia que eram onze horas. Olhei para o meu relógio de pulso: onze horas. Não podia ser, deviam ser umas quatro horas da tarde. Bati no meu relógio: estava parado.
“Eu entrei aqui para fugir da chuva e ouvi a máquina…” disse-lhe.
Ela parou o que estava a fazer e olhou para mim, desconfiada.
“Bom, mesmo que tenha vindo por acaso tem direito a pedir o seu tempo” ouvi outra voz, ao meu lado no escuro. Outra mulher, mais nova que a primeira. Sorriu-me “porque é que quer parar no tempo, qual é o momento que quer recuperar? Qual é a pessoa que espera?”
“Eu… eu só me escondi aqui por causa da chuva e… desculpem…” balbuciei, sem compreender.
Ela sorriu, curiosa, e olhou para a senhora velha no centro da sala. Depois, tocou-me no braço e falou baixinho: “a minha mãe costura o tempo desde que o meu irmão desapareceu. Há tanto tempo que mal me recordo. Já estamos em que ano? Aqui é sempre o mesmo. O tempo aqui não entra. A minha mãe costura-o à volta dele próprio, numa repetição eterna, à espera que o meu irmão volte. Lembra-te disso.”
De repente, a cara das duas era demasiado familiar, aquele som da máquina era muito familiar, a voz das duas, a casa, tudo era demasiado familiar. Olhei para as cortinas brancas que tapavam a janela grande, o relógio com números romanos, as mulheres pálidas, solitárias e perdidas que me olhavam de volta. Olhei para trás, para a porta, e depois de novo para aquelas mulheres que eu tão bem conhecia.
“Não… Eu… eu tenho de me ir embora… eu…”
“Não tem nenhum tempo que queira? Não tem nenhum tempo onde queira viver para sempre? Não quer ficar no agora?”
Não respondi. Saí daquele quarto quase a correr, e não olhei para trás até conseguir chegar a casa e sentir-me a salvo, ignorando a chuva a bater-me com força na pele, a pesar-me na roupa. Não podia ser. Isto não existia. O que eu tinha visto não existia! Estava a enlouquecer. Só podia!
Cheguei a casa em pouco tempo. Entrei na sala e encostei-me à porta. Olhei para as cortinas brancas, abertas, e a janela enorme cheia de luz. Olhei para o relógio com números romanos. A minha mãe sorria para mim por detrás dos óculos, a trança longa despenteada. O barulho da máquina de costura dela, a acabar um qualquer trabalho para uma qualquer cliente, arrepiou-me. Não podia ser. O que eu tinha visto não existia. Não existia. Não existia. O som parou.
“Estás encharcada! Vai tomar banho, para não te constipares!” pediu-me a minha mãe.
Olhei para a fotografia do meu irmão Carlos, de seis anos, abraçado ao meu pai.
“Mãe, acho que alguma coisa vai acontecer ao Carlos.”