É costume que governos e imprensa avaliem os outros países pela forma como tratam os seus cidadãos e, depois, o modo como tratam os estrangeiros. A regra é simples: há que medir o grau de respeito pelos direitos humanos. Consideremos por direitos humanos elementares, aqueles que derivam da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789(1).
Agora, com o Mundial no Catar, o mundo Ocidental descobriu que não se respeitam os direitos humanos mais básicos. Não há respeito pela integridade da pessoa, o respeito pela orientação sexual não é tido em conta; não há interesse pela opinião, especialmente, política que pode conduzir à prisão quem insistentemente a queira dar. Não se pode dizer que encare todas as pessoas como iguais, como preconiza o artigo 1.º da Declaração de 1789 e de 1948; e o que dizer da igualdade de género? A hipocrisia dos líderes Ocidentais vai longe o suficiente para alcançar o ano de 2009, quando foi decido aceitar a candidatura catariana.
Proponho fazermos uma viagem pelo que é o respeito dos direitos humanos nas avançadas democracias do paraíso Ocidental. Para que espectadores de todo o mundo pudesse assistir a cinco jogos na Arena Pernambuco, uma família foi expropriada da casa que durante anos levaram para construir. Este foi um exemplo de 22 mil famílias que tiveram de ceder espaço ao Mundial e os Jogos Olímpicos. Subamos ao norte deste continente e vejamos como há bem menos de 100 anos, as escolas eram para brancos ou “pessoas de cor”. Neste ponto, temos de parar e ver como a ironia é algo tão curioso. A sociedade estava dividida entre “pessoas de cor” e brancos o que, por oposição, coloca os brancos sem cor, porém, os invisíveis eram as pessoas de cor; que até para as necessidades humanas mais elementares, quis a sociedade estadunidense que se dividissem entre casas de banho para brancos e para “pessoas de cor” sem mistura possível até nos transportes públicos.
Aceito a crítica de que isto se passou há umas décadas e hoje a sociedade está mais aberta e sensível aos direitos. Nesse caso, os dados indicam que negros compõem 13% da população nos Estados Unidos da América, contudo a percentagem de população presidiária revela uma subida para os 38%. Resumindo, por cada 450 brancos presos, existem 2 306 negros a serem encarcerados; se desviarmos os olhos para as detenções, então são 6 109 negros por cada 2 795 brancos. Imagine-se, por um momento, que estes números não são provenientes dos EUA e os atribuíssemos a países do Médio Oriente, Ásia ou África. As críticas que seriam feitas em países tão pouco democráticos…
Todos sabemos da realidade social na mais avançada democracia Ocidental e paladino das liberdades a conquistar em países estrangeiros (especialmente se forem ricos em alguma matéria-prima de interessante valor). Proponho, então, um deslocamento geográfico e coloquemos os holofotes sobre o Velho continente.
A sociedade portuguesa ficou chocada com as imagens de imigrantes que se acumulavam em pequenos quartos e a quanto trabalho se submetiam em troca de tão pouco. O Alentejo constou nas notícias por ser um lugar onde uma megaoperação revelou uma extensa rede de tráfico humano e de condições de trabalho que criticamos em longínquas paragens.
Aqueles mirtilos que tanto apreciamos, afinal, foram colhidos por pessoas com uma jornada de trabalho que dura desde que o sol nasce até que se ponha. Agricultores, que se queixam dos parcos apoios ao setor, empregam trabalhadores a 3,50 €/h (ainda menos em alguns casos) ou com a possibilidade de terem trabalho à porta. Basta sair do contentor e o local de trabalho ali está, à espera. Os tomates cherry não se põem na caixa para irem diretos às prateleiras dos supermercados.
O que se passou no Catar, e das críticas feitas, é de uma farsa hipócrita dos líderes, mas também das sociedades ocidentais. Pode-se afirmar desconhecimento sobre as condições de trabalho no país mais “liberal” na Península Arábica? E o gasto necessário para climatizar os estádios não são mencionados pelos ativistas, ou o ativismo esgotou-se aquando da COP-27? O que dizer do “consumo ético” que prefere não questionar sobre o que se passa a montante na cadeia de produção? E quando a Rússia respeitava os direitos humanos suficientemente para acolher o Mundial de 2018 ou a China e os Jogos Olímpicos (será que os uigures eram respeitados)?
A culpa não reside no Catar. O problema vai tão longe quanto o supermercado onde compramos produtos colhidos por trabalho escravo, em condições tão degradantes e desumanas que jamais pensaríamos existir no país que celebra 200 anos desde que deixou de haver súbditos de um rei absolutista para existirem cidadãos com direitos invioláveis inspirados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
(1) Que mais tarde inspiraram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948