O apelo do mar

Falar de Descobrimentos implica recordar a audácia e a coragem dos nossos antepassados que, num momento de total determinação e arrojo, se aventuraram por caminhos ainda desconhecidos. Recordemos o episódio do Adamastor, na epopeia de Luís de Camões, Os Lusíadas e entendemos, claramente, todo o ambiente e antecedentes deste encontro. É simbólico, representa o medo do desconhecido e, homem que é homem não admite receio, inventa monstros. Homem aqui entende-se ser humano apesar dos marinheiros terem sido masculinos, como a palavra define literalmente. Faltavam ainda uns séculos para as mulheres chegarem a esta profissão e assumirem o comando. Era tolerável falar de seres estranhos, impossíveis de descrever para encobrir os mais profundos anseios e incertezas. O Adamastor inicialmente é descrito como horrendo e assustador e, por fim, desmonta-se, mostrando um lado humano de espanto, admiração e sensibilidade, ao relatar a sua história, ao revelar as mágoas do seu coração apaixonado e não correspondido. É caso para dizer: é de homem! Assumir sentimentos!

A data de 1415 é um marco histórico. A conquista de Ceuta é a abertura de uma janela plena de aventuras, uma panorâmica que, rapidamente, vai mostrar que o mundo é redondo e que o longe se faz perto. E a decisão de Ceuta não foi, de modo algum ingénua. A proximidade de Portugal e a confluência das rotas caravaneiras, provenientes do Oriente, teve um peso considerável na escolha. Contudo, para se chegar a este ponto histórico é necessário analisar os seus antecedentes. As lutas entre cristãos e muçulmanos aconteciam desde tempos imemoriais e a derrota dos segundos, na Batalha do Salado, em 1340, foi uma mais valia para a continuidade. A técnica militar e a estratégia serviram de rampa de lançamento para o que se avizinhava. Já anteriormente, D. Dinis, sem o saber, deixou a sua marca indelével nesta cruzada marítima, ao mandar plantar o Pinhal de Leiria. Foi aí que os pinheiros cresceram, física e historicamente. A madeira usada para a construção naval foi retirada desse local, que protegia a terra da desertificação. Visionário, este rei. Em 1380, D. Fernando cria a Companhia das Naus. Estava o mote dado. Com a morte deste, em 1383, abre-se uma crise dinástica que dura 2 anos. Foram tempos inovadores, plenos de acontecimentos únicos e onde a burguesia, a classe social em ascensão, tem um papel determinante. A Batalha de Aljubarrota, no dia 14 de Agosto de 1385, só veio confirmar aquilo que já se sabia. A superioridade estratégica de um povo que se sentia apertado no seu rectângulo, encostado ao Atlântico.

Os meios técnicos que dispunham eram rudimentares, aos olhos de hoje, de um mundo carregado de tecnologia. A caravela, símbolo das descobertas, teve a sua origem numa embarcação típica do norte de África, o cáravo, que não possuía o sistema de velas que os portugueses introduziram. As adaptações às necessidades lusas, resultaram nas embarcações mais úteis e práticas que foram cruzar os mares desconhecidos.

As primeiras incursões pela costa ocidental africana foram feitas com barcas e barinéis, de que se sabe muito pouco. A barca devia ter cerca de 30 tonéis de arqueação, cobertura a popa e à proa e um mastro com pano latino e vogava sem remos. Foi numa desta que Gil Eanes dobrou o Cabo Bojador, em 1434. O barinel seria maior, considerado o expoente máximo da época e deve ter tido origem no Mediterrâneo. A primeira referência escrita é de 1415. A caravela data de 1226 e assume vários nomes, alfamista, pescareza, latina, de descobrir, antiga meã, redonda ou de armada, conforme a função que adquiriria. Inicialmente possuía somente um mastro, a latina teria dois porque levava um pano latino, a vela triangular. Manteve-se como navio de exploração até á viagem de Bartolomeu Dias que, em 1487/8, dobrou o Cabo das Tormentas, depois Cabo do Boa Esperança, entrando no Oceano Índico. Teria cerca de 40 a 60 tonéis de arqueação, uma coberta e um segundo pavimento, com um pequeno castelo onde se encontravam as peças de artilharia, os falcões e os berços. No final do século XV surge a caravela latina, de 3 mastros e que ia até os 100 tonéis. Mais tarde aparece a caravela redonda, de 4 mastros, com arqueação entre 160/180 tonéis, de pano rectangular, no traquete. A nau tinha 3 ou 4 cobertas, incluindo-se neste número o convés e as últimas cobertas, tinha castelos na popa e na proa, 3 mastros com pano redondo no grande e no traquete e pano latino no mastro da mezena, o mais chegado à ré. Tinha peças de grande calibre, tendo sido criadas as buzinas, orifícios redondos para a saída dos canhões e portinholas para os tapar, quando não necessários. Podiam variar entre os 120 tonéis e os 400, no tempo de D. Manuel I ou mesmo 900, com D. João III. Eram muito robustas para viagens de longa duração e resistiam melhor às intempéries naturais. Também tinham maior capacidade de armazenamento de mercadorias e mantimentos bem como mais alojamentos para a tripulação. Era um navio muito eficaz. O galeão tinha uma função bélica. Era mais estreito e comprido do que a nau, com dois mastros com pano redondo, no traquete e na grande, 2 à ré, com pano latino, na mezena e na contra-mezena. Era esquivo à artilharia inimiga e muito mais rápido. Segundo se sabe, a diferença entre nau e galeão estava na morfologia do casco e no velame.

Posto isto, é fácil de entender como estes homens foram inovadores, destemidos e afoitos. Viajar numa geringonça daquelas implicava riscos não calculados e muitos sobressaltos. Não era só a natureza que os desafiava e atormentava, que essa não pode ser nem derrubada nem alterada, mas também os corsários e os piratas, que os tentavam aniquilar e saquear, espoliá-los de tudo o que teriam alcançado. Degladiaram-se, enfrentaram-se e houve vencidos e vencedores. O mar continua lá, testemunha destas guerras, dono da verdade, da união de um conhecimento que se foi universalizando.

Hoje conhecemos melhor o mar, esse gigante, cheio de marés, de baixios, de subidas e descidas, de cumplicidade com os ventos e as estrelas. Temos outra tecnologia, já não navegamos nas barcas nem nas caravelas. Desafiamos de outro modo, com peças leves e perfeitamente controláveis pelo homem. Contudo a força da natureza dita a última palavra. No domingo, dia 8, um kitesurfer aventurou-se na praia de Sesimbra. As condições atmosféricas eram desfavoráveis, mas ele decidiu aproveitá-las. O final da jornada não correu tão bem como previu. O vento empurrou-o conta o paredão e, consequentemente, ficou preso no kite. As espias enrolaram-se na perna direita e estava a lutar, a debater-se de modo inútil. As forças já lhe faltavam quando alguém, qual peito ilustre lusitano, se lançou à agua para o salvar. Rapidamente se seguiram mais arrojados cidadãos que, num esforço hercúleo, o resgataram da água gelada e revolta. Felizmente que só estava em pânico, da luta inglória que estava a travar e, estranhamente, a sua pulsação estava pouco acelerada. Difícil foi rebentar as espias encharcadas que lhe prendiam a perna, mas, felizmente, ficou bem e a aguardar a ambulância. Nada de maior. Regressou tudo à normalidade depois de o deitar e obrigá-lo a respirar pausadamente, o que é complicado em momentos deste género. O seu olhar era de incompreensão e de agradecimento. Nunca o irei esquecer assim como aos destemidos que se lançaram a água, sem hesitação, num momento de grande aflição. Dá-me esperança, tranquiliza-me saber que a vida humana ainda é um valor máximo, que ainda há homens destemidos, arrojados e corajosos e, mesmo arriscando a sua própria vida, decidiram salvar a de outrem.  É louvável. São pessoas bem formadas, com valores definidos, altruístas. Um exemplo que deve ser divulgado e que sirva de modelo. Eu só fiz a parte final, tentar dar a calma e a tranquilidade a quem, por momentos, pensava que nunca mais voltaria a viver e fazer kitesurf.

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