Lili, a puta

Ser criança é viver num mundo de faz de conta, costuma dizer-se. Será que é mesmo assim? A questão maior a se colocar é que os adultos raramente ouvem as crianças, aqueles seres pequeninos que são esponjas e captam tudo com intensidade. Não serão todas assim, mas eu gostava de olhar para os “grandes” e tentar entender o que diziam.

Entre os vários dislates, apanhava aqui e ali e juntava as peças conforme me faziam mais sentido, aquilo que todos buscam e nem sempre encontram. Tive a sorte e o privilégio de crescer numa casa cheia de livros e esses objectos cheios de letras despertaram-me para o mundo das folhas e do imaginário. Queria saber o que lá estava escrito e, como ainda não tinha entendimento, pedia ajuda para a minha fonte encher.

A minha avó, já cega quando nasci, tinha uma extraordinária paciência para me ensinar e, aos poucos e poucos, as letras juntas começaram a fazer luz na minha cabeça e no som que era pronunciado. Sempre gostei de aprender e não encarava o estudo e a escola como algo negativo, antes pelo contrário, era um manancial que não parava de jorrar.

Entre ouvir conversas que os supostos adultos tinham à minha frente, sem qualquer tipo de restrição e ainda bem, assim como escutar temas mais polémicos como a política e a cultura, captei de tudo um pouco e fui fazendo o meu pé-de-meia. Claro que nem sempre associava o significado ao significante ou vice-versa, mas uma criança tem que saber brincar.

As aventuras de alguns heróis dos livros encantavam-me. O rei Artur era o meu preferido e Avalon seria o local para viver em paz e para sempre. Que tola! Contudo, havia outros que me deliciam com sabores especiais: a Alice e o Gulliver. Claro que havia um motivo muito importante que os unia e estava ligado às fantasias infantis, de crescer e diminuir bem como ser invisível.

Mais tarde este movimento, de cima para baixo, ganhou outra dimensão, mas não vem agora para o caso. Deixemos a ingenuidade no tempo das flores e cerejas e fluir para o que importa. Como menina clássica que era, daquelas que usam tranças enormes enfeitadas com laços, o meu brinquedo de eleição seria a boneca. Tive várias e ainda conservo algumas por serem marcos de vida.

Um dos meus tios era embaixador e, como o nome indica, “embaixava-se” em vários países. Da Alemanha trouxe-me um jogo que me deliciou até ao céu. Peças pequenas, com formas diferentes e de cores fantásticas, permitiam que se fizessem construções peculiares. Gostava mesmo muito dele e das horas de prazer que me proporcionou. Mais tarde descobri que tinha sido inventado por uma aluna da famosa escola Bauhaus.

Porém, esta adversativa que tudo muda e nem por isso é de relevo rugoso, o que mais marca deixou foi uma boneca, trazida do Brasil e que era muito grande, comparada com o meu tamanho. Convém agora mencionar que fui menina para me despachar a falar e antes de um ano de idade já soltava vocábulos com a fonética correcta e bem audível. Nunca fui de deixar nada por dizer.

Como se pode imaginar, o meu contentamento era de pulos! Peguei nela, com custo, ou melhor, agarrei-me com todo o meu corpo e encontrei a parceira certa para as minhas vidas, as mil e mais outras tantas, que criava na minha cabeça. Ruiva, elegante, de olhos gigantes e cabelo todo liso, o oposto do meu, era a perfeição que se desejava. Minha para sempre!

Pediram-me para lhe dar um nome, como é óbvio. Escolhi o que me pareceu mais adequado, um que tivesse carácter e elegância intemporal. Como era uma boneca muito fora do comum, em termos de tamanho e de postura, entendi que devia ser Liliputa, por ser grande. O Gulliver ainda estava na minha memória e fez toda a diferença.

O mundo dos adultos é perverso e cheio de meandros onde as águas nem sempre desaguam em conformidade. Não sabem escutar o que os mais novos dizem e já perderam a frescura dos tempos da liberdade poética pueril. A minha boca apenas pronunciou uma palavra, contudo nos ouvidos de quem é capaz de tudo, inclusive de matar o seu semelhante por dá cá aquela palha, eu havia dito: Lili, a puta.

Foi assim que aquela boneca que descansa agora numa cama de luxo, com um guarda-roupa onde existe um casaco de “peles”, vestidos e tudo o mais, ficou apelidada. Não com o nome original, aquele que a minha cabeça escolheu, mas sim com o que os que perderam a frescura do essencial, ouviram. Nem a Lili sabe o que isso seja, por ser uma boneca e muito menos o saberia eu, que tinha apenas dois anos.

Lili, a puta ainda é falada como um evento especial. Por mais correções que tenha feito, Liliputiana, o tal nome que na altura tive alguma dificuldade em pronunciar, ficou a pobre boneca com o fardo de ter um nome associado a uma forma de vida que nunca poderia ser sua. Malhas que o império tece.

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