Posto Avançado do Progresso

É sabido que Portugal tanto invoca e de maneira gloriosa, os tempos dos Descobrimentos, nomeadamente as conquistas ao desconhecido continente africano, mas pouco se fala da “manutenção” dessas colónias assim declaradas. Enquanto que a História nacional tenta apagar desse registo de “ouro” de tão negro período, Hugo Vieira da Silva, um realizador que tem dado nas vistas desde a sua estreia além-fronteiras em 2006, com Body Rice, apela ao retorno a esses capítulos esquecidos, propositadamente, do nosso currículo enquanto país, e o faz através da inspiração do pequeno conto de Joseph Conrad – An Outpost of Progress – publicado em 1897.

Esta transcrição de uma alusiva ficção para outra, indicia-nos um mundo infinito que traduz na mística vastidão da Floresta Tropical do Congo, hoje descrito como um dos locais terrestres menos explorados e, há séculos passados, um lugar povoado por fantasmas e outras fantasias apenas existentes em folclore e na imaginação. Porém, em Posto Avançado do Progresso, os fantasmas são os portugueses, os dois colonizadores que chegam a um entreposto comercial congolense munidos pelos seus fatos brancos que reluzem nas sombras, trazendo consigo ordens e ideologias que não são deste Mundo. Mesmo assim, a dupla protagonista diverge, quanto às suas doutrinas e à respectiva relação com os nativos.

Mais do que um choque cultural, Posto Avançado do Progresso é um olhar ao desconhecimento e o magnetismo desta.
Mais do que um choque cultural, Posto Avançado do Progresso é um olhar ao desconhecimento e o magnetismo desta.

João de Mattos (Nuno Lopes) acredita numa superiorização de “raças” e a urgência de transportar para África o muito da civilização moderna dita europeia, enquanto que Sant’anna (Ivo Alexandre) demonstra fascínio por estes mesmos “selvagens“, assim como um afecto por estas terras amaldiçoadas. Essas referidas diferenças serão confrontadas com o próprio magnetismo do Congo, assombrando as suas almas com alucinações e distúrbios para além do visível.

Outro contraponto do Posto Avançado do Progresso é a imagem exposta dos colonizados, que traduzem uma organização hierárquica diferente daquilo que os portugueses julgam possuir, duas verdades desafiadas que só o espectador aperceberá das particularidades e das limitações dos homens ocidentais em entender a cultura que forçosamente tentam integrar e moldar.

Baseado numa história de Joseph Conrad
Baseado numa história de Joseph Conrad

Nesse sentido, Hugo Vieira da Silva induz nas personagens africanas algo mais que apenas apreços etnográficos ou meramente decorativos, mas sim em figurações da civilização europeia, dando a entender e a preservar a realeza africana, vista e discutida como uma “casta” inferior, mas eventualmente comparada à hierarquização portuguesa. Esse método reduz-se na referência literária e social da época ou simplesmente da História, desde Padre António e o misticismo envolto até citações ao escritor Almeida Garret – “O meu nome é Ninguém” – Posto Avançado do Progresso funde dois mundos distintos, divididos pelo Mar Mediterrâneo, porém, intrinsecamente cúmplices do próprio rumo mundial.

A desordem é somente um engodo para que os “intrusos“, aqueles que proferem o direito pelas terras “achadas“, se percam na vastidão daquele indomável mundo, não pertencente a nativos, nem a forasteiros. E é nesse caos que personifica numa entidade fantasmagórica, abanando dois mundos e afrontando as convenções anteriormente estabelecidas. As alucinações, a possessão selvagem, o desespero, o “progresso” nunca cumprido nem nunca encontrado, elementos que deambulam nas selvas congolenses como animais sedentos pelas suas presas.

Numa terra de fantasmas e de superstições, os portugueses são os verdadeiros elos com o sobrenatural.
Numa terra de fantasmas e de superstições, os portugueses são os verdadeiros elos com o sobrenatural.

Os fatos dos portugueses, sobrenaturalmente cintilantes, perdem o seu brilho, assim como a razão destes viajantes protagonistas. Hugo Vieira da Silva transforma este relato sobre a animalidade do “homem branco” numa demanda cinematográfica cujas referências e homenagens estão presentes como fenómenos. Desde Luis Buñuel, passando pela comédia slapstick muda de um Laurel and Hardy, ou até mesmo a atmosférica sexualidade e estranheza do cinema de João Pedro Rodrigues, tudo amontoa num biótopo criado e erguido pelo mistério, o contra-campo e a sugestão.

Depois de Swans, Vieira da Silva cumpre um retrato compulsivo da nossa ligação inerente com África, o continente arrancado da nossa História através do conflito bélico, mas que mesmo assim produz em nós, um amor proibido, nunca esquecido, mesmo com o decorrer de Gerações. O cinema tem contribuído para esse fascino, para essa essência magnética, Hugo Vieira da Silva apenas reafirma essa dilecção.

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