Enterrava o nariz no pêlo do gato amarelo enorme que dormia ao sol. O gato abria os olhos com preguiça e olhava para ele, esperando garantir que era aquela presença desejada e não um abusador qualquer, e a seguir voltava aos seus sonhos. Com o que é que será que sonham os gatos? Ele enterrava o nariz e a cara toda no pêlo e respirava. Cheirava. Havia alguns cheiros que adorava: a cabeça pequena dos bebés, o refugado para choquinhos fritos da mãe, um perfume qualquer do seu passado de criança (seu? Ou de outra pessoa?). Mas sem dúvida que aquele cheiro, o cheiro a gato quente que dorme, ganhava.
Às vezes sentia-se muito sozinho. As pessoas pensavam que não, viam-no como alguém sem sentimentos, ou talvez como um tonto feliz. Mas era mentira. Só pensavam assim porque ele tinha um ligeiro atraso mental. Esqueciam-se que ele era inteligente e se apercebia de tudo. Esquecia-se que ele via, sentado num canto onde se esqueciam dele, que as pessoas se esquecem sempre dos sentimentos alheios, fossem eles de quem fossem. Por isso, sentia-se muito sozinho, um quadrado num mundo feito de pessoas redondas, e só os gatos o acompanhavam. Eram silenciosos e ele também gostava de silêncio. A confusão enervava-o. Um dia sonhou que entendia os gatos e tinha longas conversas com eles sobre filosofia e pesca. Acordou a pensar: será que os gatos também sonhavam que o entendiam e que tinham longas conversas com ele sobre bolas de pêlo e ratos? Ele acreditava que era bem possível.
Levantava-se e ia para a rua. Por vezes, os seus gatos seguiam-no, se estivesse sol e eles considerassem que iriam usufruir mais do calor lá fora. Outras vezes saía à noite, e aí os gatos seguiam-no de certeza, como cedendo e procurando essa natureza noctívaga que não conseguiam seguir tranquilamente fechados em casa. Os gatos, a maioria das vezes, também são bastante egoístas, mas ele perdoava-lhes mais do que às pessoas. Ia para a rua de pantufas e pijama polar, caso fosse inverno, e conferia se aquele pedaço de passeio em frente ao seu prédio estava limpo. Depois, sentava-se e deixava-se ficar a escutar o mundo. Os ventos traziam as vozes de várias culturas, e ele fazia um esforço muito grande para ouvir todas as histórias que eles quisessem partilhar com ele. Nunca tinha ouvido nada, mas não era de desistir. Por isso, tinha esse ritual de sair todos os dias um bocadinho à rua e escutar.
Um dia, no outono, saiu de fato de treino e sentou-se mesmo em frente à porta do prédio. Fechou os olhos e sentiu um dos gatos subir-lhe ao colo. O cabelo esvoaçou, sentiu um frio agradável na pele quente e ouviu. Pela primeira vez, ouviu e conseguiu perceber o que o vento lhe contava. Ouviu várias histórias de longe, pequenos momentos de perto, odisseias, animais extintos, boas acções e pecados mortais. Ouviu profecias sem importância, ouviu súplicas, ouviu segredos importantes e chorou silenciosamente, as lágrimas grossas a caírem para cima do gato enroscado ao seu colo. Abriu os olhos e viu como as folhas amarelas e castanhas rodopiavam só à volta dele, numa espécie de pequeno tornado ou vórtice, de pequeno milagre e alegria. Sorriu. Riu. Alegremente, riu às gargalhadas como os bebés cujas cabeças tanto gostava de cheirar. Riu até ficar sem ar e o vento desistir daquele pedacinho de felicidade. Agarrou-se ao coração como quem iria morrer de emoção naquele momento. A mãe foi buscá-lo à porta de casa e ralhou-lhe por uma razão qualquer que não era importante para ele. Ele acenou vigorosamente às folhas, despedindo-se ou convidando-as, fazendo promessas estranhas, sem ouvir uma palavra que fosse da inocência da mãe.
Tomou banho e deitou-se. Os gatos rodearam-no. Sentou-se na cama e enterrou a cara em cada um deles, para lhes sentir o cheiro. Cada um tinha um cheiro diferente a gato quente. Deitou-se e fechou os olhos, adormecendo com um sorriso sábio na cara. Ele sabia. E nessa noite a profecia do vento cumpriu-se. Ele não voltou a acordar mais.